Viver é seguir perdendo

Sinto tanta, mas tanta saudade de ti,

Que é como uma alma que se deita comigo

Na cama e acorda antes que eu abra os olhos.

Me observa, a saudade, sempre me espreita,

Saudade que se infiltra nas paredes do meu ser,

Saudade que flutua na poeira dos móveis e do viver,

Na ausência de som que há na casa vazia,

E eu aqui, sentado, às vezes de pé,

Outras tantas deitado como uma folha fria;

Imóvel, a ouvir do que se foi a mudez,

É uma coisa difícil, entendes? Tudo é insensatez,

Uma coisa que me atravessa o corpo,

Coisa que nos devora e nos deixa oco.

E os outros? Os outros não sabem,

Nem tentam, nem querem saber,

Falam-se de eternidade após a morte,

Pregam-se felicidades inefáveis no pós-vida,

Mas não passam de promessas e crenças vazias.

Quero-te a ti, que eternamente perdi,

Não uma ideia, uma promessa sem garantia,

Não façam isso com o povo:

Ficar vendendo céus e eternidades,

Ficar vendendo campos de esperança

Onde só há cadáveres molestados de crianças,

Onde só há finitudes e da vida brevidade.

Não quero mitos, tampouco crendices,

Porque a verdade, a única verdade

É que nada há depois da morte,

Nada além do que se perde: eis a realidade.

Perdi as forças,

Perdemos o rumo,

Perdemos famílias e seus sumos,

Perdemos o som real das vozes,

Os livros fechados na estante,

A verdade distorcida a todo instante,

As palavras que antes saíam de mim

como uma enxurrada,

E agora são como um rio desaguado,

Como se a língua tivesse secado,

Como se a alma, essa coisa sensível, delicada,

Tivesse desistido de sentir.

Perdi os meus alunos,

Perdi os meus irmãos,

Perdi o meu lar,

Perdi os frutos do meu presente e do futuro,

e sinto demais, sinto demais aqui,

Neste quarto nitidamente escuro.

Viver é ir perdendo lentamente

O brilho do olhar, o riso da gente,

Sem notar que a alma, indiferente,

Se esvai na rotina, tão imperceptivelmente.

Essas dores que não acabam,

Essa corda apertando o pescoço,

E eu sei, sei que vou enlouquecer de vez,

Que vou ser engolido pelo tempo de fartura ou de escassez

Pelo tempo de sabedoria ou de estupidez.

E o mundo? O mundo vai seguir seu rumo,

Como seguiu antes do meu nascimento,

Como seguiu para os que partiram há dois,

há cinco séculos do nosso surgimento,

Tudo vai girar sem saber que vai girar,

Tudo vai fluir com seus risos e shows,

E eu? Eu serei absolutamente esquecido,

Perdido no meio da mata sem mata alguma,

Rodeado por um silêncio que ninguém ouve,

Nem os deuses, esses que só escutam o que não há,

Esses que nunca souberam de nada de seus próprios filhos e filhas.

Onde está tudo o que amei?

O brilho das estrelas que me acalmava onde foi parar?

E o mar? Para onde fugiram as ondas do mar?

Os pássaros, que antes voavam a cantarolar,

Estão estranhamente calados nas árvores

(Porém até as árvores já foram queimadas.)

Não há mais cântico, não há mais estradas,

As crianças não brincam nem riem como antes,

A decadência da vida atual escorre pelos muros e estantes,

Há só os dedos do vazio modelando cada ser,

Cada coisa, cada gesto, cada plateia,

Esse vazio onipresente sem fundo,

E o Silêncio... o Silêncio que governa os seres,

As coisas, os acontecimentos, as ideias...

O Silêncio pisando nossas vozes

que já não conversam mais,

Calando, perene, os dias ceifados há séculos atrás,

E aqueles, meu deus, aqueles dias que nunca vão passar,

Porém que queríamos tanto sentir ainda depois,

Pois a Vida é tão linda, é tão frágil, é tão rápida e devagar!

Tudo, tudo é sombra de um tempo que é e que nunca foi.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 13/10/2024
Reeditado em 29/10/2024
Código do texto: T8172371
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