ENQUANTO O CORPO VIDA FINGE AO MUNDO

À esperança não há espaço,

deixai-a aqui logo na entrada;

A lá Procusto, talho e berço,

a poesia fenece violada,

e pendula, ante atro fosso,

a metáfora esquartejada.

 

Neste solo bárbaro e morto,

de Moloc que a alma consome,

o servo imita o porco

louvando o mais infame

e espera, fraco e torto,

que o dono assim o ame.

 

Eis o mundo soberano

em decadente Estado

que se diz republicano,

ah, falso e torpe califado;

Império grego ou romano,

não fosse tão descarado.

 

Veja o poeta estarrecido

por tamanha atrocidade;

Traidor, assim foi chamado

quando expressou a Verdade

num verso reto, incontido,

ao falar de liberdade.

 

Cometeu doloso soneto

do tipo petrarquiano,

maléfico tal cianeto,

ofendeu o palaciano

e seu verso indiscreto

atiçou inculto tirano.

 

O Conselho foi instalado

por cerimônia sem fim,

e o tolo iluminado

de túnica negra-carmim

se enternece bajulado

pelo amém dito em latim.

 

Pavonice, penteado,

riso, sacudir de panças,

rímel bem aplicado,

careca luzente, carrancas,

espartilhos, nós apertados

e cetim cobrindo as pelancas.

 

Infiltrados nas livrarias

agentes, por devoção,

trazem quinquilharias

em resposta à convocação

e, com pirotecnia,

testemunham na sessão.

 

Inveja, ressentimentos,

mimimi, coisa e tal,

seguem lei, regulamentos

em cinismo marmoreal

e ornejam qual jumentos

sob ordem regimental:

 

- É permitida ciranda,

curtura, festival,

banquete em áurea vianda,

rima pobre trivial,

solipsismo, propaganda,

mas que seja libidinal.

 

- Tragam dossiês forjados,

obras que o condenem,

precisamos de culpados,

seja prova que tiverem

e os comparsas aliados:

Virgílio e o tal Alighieri.

 

Do agudo estridor de estolho,

o despacho débil não tarda;

é lira ao mundo caolho

da figura assinalada

na essência, odor e barulho,

de gasosa feijoada.

 

- Oremos em culto profano

que condena o Universal.

vale a vontade sacana,

em registro cartorial,

desta crença mundana

de engenharia social.

 

Razão invertebrada,

engodo verbal,

verdade resvalada

na censura infernal

e sentença celebrada

com o próprio genital.

 

Será tiro, veneno ou corda?

qual a justa punição?

cela, lança, faca torta,

perda de reputação?

- Que seja a alma morta,

esta será a sanção.

 

O algoz, esperto açougueiro,

canta o rito em elegia;

Um golpe, o mais traiçoeiro,

sacrifico é, sim, liturgia:

- Não poupem o prisioneiro

e siga a nossa orgia;

 

Publiquem mais um decreto,

aumentem a castração;

O intento não é secreto

vivemos em redenção,

nada mais livre e honesto

do que a falta de oposição.

 

Antes do show contratado,

findo o ato salutar,

ainda quente o sacrificado,

todos de pé hão de cantar

da República Popular.

 

O farol resta apagado,

eis tenebrosa evidência:

o excelso foi profanado

e a boquiaberta consciência

assiste o céu à lama lançado

a contentar Sua Excelência.

 

Sobre imagens fraturadas,

comemora o reino encantado.

restam almas ressequidas

e um neurótico enfeitiçado

que, descalço, deixa pegadas

no chão de vidro quebrado.

 

Por fim, o Narciso do Estige

extasiado por tanto matar,

preso ao corpo que vida finge,

serpenteia e volta ao lugar

no inferno, que o rubro tinge,

onde queima o versejar.