A Canção das Águas Sem Fim
Venha, siga-me pelo ar úmido que se estende
contra a réstia de luz da tarde
desfalecida sobre a lâmina de água
que persiste no horizonte
de escarpas de telhados,
como ilhas em sargaço de escombros;
passemos por alamedas desertas
polvilhadas de sobras de árvores
trazidas pelo fio da corrente,
como acontece com tudo que é morto;
há sacos de lixo itinerantes
estampados nas pedras
ou aninhados em cercas
parecendo uma tenebrosa árvore natalina.
Restos de um saque espalham-se pelas beiras:
uma certidão, fotos e uma velha carteira
de onde saltam rabiscos de um bilhete.
Abrigos sussurrantes debruçam-se sobre as casas desertas,
sobre pensões baratas
e restaurantes a quilo, que não mais.
Abobalhadas expressões guilhotinam em coro a pergunta fatal:
O que aconteceu?
Sigamos nossa visita a este
palco vazio que encena o absurdo.
Suas ruas já acolheram
mulheres impacientes com o atraso do ônibus,
insistentes ambulantes,
bancas de flores desidratadas
e o credo embandeirado de partidos.
Um bafo translúcido esfocinha a lama, água, a parede
e descansa nas vidraças embaçadas
esculturadas em terraços sujos,
seu odor extrai do fundo dos bueiros o que lhe é mais caro.
Siga-me, talvez encontremos rostos
que jamais encontraríamos em tempo de paz,
pelas calçadas que viviam em sobressaltos.
Estávamos muito ocupados com nosso tempo
esgotando-se em mensagens pelas redes.
Lá se vai a tarde de maio enrolando-se pelo asfalto alagado
convertendo hábitos em espera.
O que haverá amanhã?
Nos parece que a esperança asilou-se por um instante
por entre despojos e, assim, permanecerá durante a vigília
enquanto a ansiedade esfrega suas costas pelas paredes
do galpão sombrio em convulsão.
Não adianta mais os tecidos nobres, cortes perfeitos
cintos de segurança ou torres de controle.
Daqui para frente, o que caberá em nós?
Nós que fomos tornados comuns pelo infortúnio,
nós levados a compartilhar o medo,
nós que enfrentamos os incrédulos,
que fizemos as máquinas sentirem vergonha
das junta de nossas mãos,
nós que não deixamos ninguém para trás,
nós com a força esvaída no tirão do último corpo trazido à tona.
Confesso, medi os instantes últimos com uma garfada apressada,
um meio gole e uma ligação banal,
com velhas palavras em frases prontas.
Confesso, eram certezas ajuizadas
em reuniões, encontros e viagens;
Eis as medidas daqueles dias agora revogados.
Reconheço, pois, são centenas de indecisões
e um punhado de revisões
enquadradas por régua no cais, comportas entreabertas,
o estouro da cota e o refluxo da foz.
Insólitas embarcações ultrapassam semáforos apagados
rumo ao desconhecido,
talvez para onde animais se estabelecem e são prioridade;
enquanto a criança, de suaves traços e dedos longos,
alfineta os olhos no nunca
filtrado pela bruma
através de uma janela tingida de barro
e de onde ergue seu promontório.
Siga-me pelo crepúsculo que ora se avizinha
e perceba o que não há mais:
nem o perfume do pão,
nem a fumaça das chaminés,
nem roupas nos varais,
sequer o sino para última missa, não, não há mais.
Sinto um pouco de raiva e uma imensa vontade de chorar.
Este abalo profundo clama por uma âncora lançada às pressas
e por uma ponte que se prenda em um lugar qualquer
onde as pedras não deslizem.
Siga-me pela noite das moradas improvisadas
em que se espera pela refeição
ofertada às almas esgotadas,
que tentam fingir que tudo está bem.
O salto repentino de um corpo insone
responde ao golpe das garras da incerteza
que rasga a fina camada do ânimo
ilhado em câmaras.
Siga-me por entre os colchões estirados que guardam
estes corpos prensados entre a umidade e o amanhã.
Perceba que a corrente tende a levar toda a grandeza
que se julgava vestir, toda pose e as porcelanas.
Contudo, nos finos salões, que do resto escapam,
sempre persiste a rica fauna
de lacaios a desvairados
a se alimentarem de cabeças
trazidas em bandejas de prata
em ceia vulgar, tal qual seus espíritos...
sim, há de tudo
nos esgotos que tomam os palácios.
Siga-me mesmo em passos vacilantes.
Compreendo seu medo escorado na impotência
frente à água turva.
Farei uma dobra mais acima em minha calça
e retirarei o tênis de solado claro,
assim, creio ser capaz de caminhar pela rua
desviando dos galhos, trapos
e das embriagadas selfies
(ferramenta útil para quem se basta em si).
Ora, não se sinta inútil aos pés do caos,
A pergunta é angustiante, sei:
Por que estou aqui?
Respondo, não poderia ser diferente,
teríamos que ser nós mesmos
a suportar tanta realidade,
nossas vidas entrelaçadas
no drama que nos foi reservado
cingidos por placidez e coragem
sem esperar qualquer reconhecimento.
Invoco as pessoas comuns,
Invoco os feridos até alma
para juntarem a cidade gota a gota
como sugere a condição humana,
em sua nobre inclinação,
de superar a conjugação e
fazer o verbo sangrar.
Agora paremos, por fim,
o dia foi longo.
Paremos aqui neste exato instante
em que as sirenes homenageiam
as chuvas infinitas
por disfarçarem nossas lágrimas.
Perdoe-me se não percorri todo o caminho,
talvez tenha esquecido algo, porém,
ali vivi e,
sim, estou envelhecendo à espera da vazante,
sim, arregaçarei as mangas,
sim, estou titubeante entre uma e outra cena
desta peça que nos foi pregada com fúria
e, então, pergunto-me
se nosso espanto serviu,
de algum forma, para abalar o universo.
Porto Alegre, RS, Maio de 2024.
(Poema Publicado na Antologia IN VERSUS VERITAS, Casa do Poeta de São Pedro do Sul, RS, 2024).
Disponível no Canal https://youtu.be/KNPfuoNGAAs?feature=shared