Canto Indígena de Guerra e Paz
I
Um choro uiva dos olhos do Grande Omama
Ao ver nos filhos toda a fome e os sofrimentos,
“Ó Espírito, por que permitiste tantos tormentos?
Olhai os corpos cadavéricos das nossas crianças!
Não viste toda a miséria que de nosso corpo clama?”
II
Há séculos e séculos, aviltando e violando,
Aqueles brancos europeus cá vieram,
Aos mares, com seus navios e caravelas
Cortando e a tudo contaminando,
Com seu Deus Trino e suas civilidades,
Aqui ancoraram e cometeram
Toda sorte branca e desumana de barbaridades.
A alma das florestas e nossos deuses, eles exorcizaram;
Filhas e mulheres, eles as escravizaram e estupraram;
Com suas tecnologias bélicas e bíblias nas mãos
Saquearam nossas riquezas e nos mataram,
Pois de bárbaros e pagãos e imundos nos chamavam,
Diziam: “Vossa nudez é um demônio, fruto do pecado”
Nossa língua, nossa cultura e ritos, tudo foi alvejado.
III
O garimpo e a ganância devastaram nossas terras,
À procura sempre faminta de mais jazidas minerais...
Deitamos no chão e choramos pelos massacres e guerras,
Sentindo no peito todas as dores e as feridas ancestrais
E atuais. “Ó Pai, por que eles não nos deixam em paz?”
IV
Nós invocamos a fúria da calma e das bestas selvagens,
Vinde, ó espíritos da Urihi, dos longos rios e das colinas!
Os falcões celestiais, espíritos xamânicos e visagens,
O sangue derramado no curso histórico pelo homem branco
Ainda clama por justiça de nossas retinas feridas e aquilinas.
Preparai vossas flechas e vossos arcos,
Vinde, minhas irmãs e meus irmãos,
Fortalecei com coragem e sangue vosso coração,
Pintem vossos rostos e corpos à vontade,
Afiem vossas facas, pois há um banquete à tarde.
Aspiramos o pó sagrado de Yãkõana agora,
Dancemos ao redor da fogueira sem demora,
Como é lindo o vermelho do pôr do sol sobre os rios,
Cantem os antigos hinos proibidos e sombrios.
O nosso cálice transborda da vingança este brio!
Vamos castrar todo homem: europeu, branco ou não,
Que violentou a pureza e a beleza de todas mulheres,
Vamos deflorar toda a flora paternalista aqui e afora
Que pisa, esmurra, queima, objetifica e descarta
Os corpos violados de meninas e moças pelas matas.
V
Um choro uiva dos olhos do Grande Omama,
Um uivo humano, bravio e espiritual de tanta dor
Que é impossível traduzir tal chaga, esse vil pendor.
No cimo do monte, sarças ardentes cantavam;
Sobre a pilha de cadáveres os corvos celebravam.
Nesse festim, coiotes e abutres se banqueteavam.
VI
Venho a ti, ó terra, céus, espíritos e mares
Oferecer como oferta de paz este meu ser
E de minha alma os jardins, jazidas e pomares.
Que haja concórdia, perdão, compreensão e alteridade
Entre nossas raças, etnias, credos e toda diversidade.
Chega de sangue derramado nos campos, lares, cidades...
Encontrai, ó irmãos, o espelho decifrador da verdade,
E veja cada um que somos somente pó do mesmo pó,
Feitos todos com erros, medos, dós e crueldades.
Vede, ó filhos desta terra, quem realmente somos,
E deixai que o amor e o perdão sejam o teu cálice,
E não um vão coração duro e um oco óbice.