Dualidade
Como é que esta descrença
Faz um homem mais homem
Se aquela tão arraigada fé
Mostrou-se corrosiva como o sal?
O homem é mais homem salgado
E menos estranho se aparenta
Quando se entranha nas lavouras
Sabendo que semente não germina
Regala-se quando cria ou descria
Constrói estradas que levam a lado nenhum
Ou às vezes a planícies infernais
De labaredas eternas
Ou de uma impenetrável neblina
Mas é sensível e até adorável
O homem
Quando faz das suas
Pois desculpa-se de tudo
E vê o caos a médio prazo
E pincela morte com cores vivaças
Mas nem sempre é criatura medonha
Sabe estender a mão de amparo
É desmedido em dizeres pachorrentos
Por vezes
E preenche vazios
E é encantador a bendizer
A afagar
E extingue os fogos onde ardem mais
Mas homem que é homem
Sabe tão bem acarretar dor
É um aprendiz deste ofício primitivo
De faina desmedida e penosa
Mas porquê tão miserável recompensa
Para o mais diligente dos operários?
Ele é prodígio que comove o público
É artista de ornamentação sacra
Filho de mestre nasce a saber
Pois atenta aos sussurros ainda no ventre
O homem é assim
Não discerna bom de mal
Então atira-se aos dois
É como um ceguinho
Que vai alpapando as esquinas
Até dar com o abismo para onde se atirar
Mas não antes sem empurrar o que está primeiro
Aquele que hesita com cautela
Inclinando o corpo adiante
Para tentar dar com o fundo
Não há nada que mude
O ser do homem
E se houver quem o diga
Um pano vermelho são as suas palavras
Escondendo um punhal de nome cravado
E cravado de más intenções
Corrosivas ao tocar a alma
Eles sabem que mentem quando
Com cura se aproximam
Porque não há mezinha
Que nos salve de nós mesmos
Lembra-te
Tu sabes o ser do homem
Tu o conheces muito bem
Fixas-lo tristonho no espelho
Tu que doas uma esmola ao mendigo
Olhando para os Céus dizendo
"Vê-de Senhor como me arrependo
Esta moeda equilibra a balança
Com certeza
Uma troca por um lugar a Seu lado
Vê-de o mendigo agradecendo e sorrindo"
Sorri cabisbaixo
Que podridão de sorriso era
Impagável vexame
De olhar morto
Rasgos nos trapos e na pele
Rugas na pele e na alma
Não sorri não
E eu?
Que não tenho lugar no Céu?
Ao mendigo não lhe dei nada
É malcheiroso e mal-educado
E estou com pressa
Tenho aonde estar
Em lado nenhum pois
Em qualquer sítio menos aqui
Mas Senhor?
Que faço que não te deleita?
Conheces-me como eu me conheço
Queres que erga um leprosário?
Mas quantos com lepra haverão?
Alimentarei o faminto?
Sabes que não me ensopo em ouro
Nem sou desprezado por ter demais
Como tanto porquinho-mealheiro
Mas foi assim que imposeste que fosse
Assim malformado e confuso
De peças antiquadas e quebradiço
À luz do teu esboço patético
Sem saber distinguir branco de preto
Assim me crês
Porém isso revela quem tu és
Mais do que quem eu sou