Poética - Raio X: O prelúdio de um olhar faminto
"Como uma adaga, eu podia penetrar tudo ao meu redor, adentrando a carne das coisas até raspar-lhe os ossos em minhas retinas; ainda assim, eu era incapaz de me ajustar a qualquer corpo, pois
decifrava as coisas sem nunca fixar-me dentro delas - sempre arguta, distante e embaçada pelo sangue estrangeiro jorrado em mim."
Em minha fome implacável, recuso-me a fazer abrigo no conformismo plácido e visível das coisas.
Digo-lhes que já não quero ser só mais um achado precioso que resplandece as pupilas do tempo.
Prefiro o mais doce esquecimento do que um dia fizeram de mim.
Vedes que não fui feita com a matéria de alguma alma perdida, ou com o furor tempestuoso de olhos assassinos; olhos que mutilam-me ao atravessarem meu rosto. Olhos que violam a minha essência, sem nunca decifrarem o que a compõe.
Vedes que não desejo o vão toque dos teus anseios indecisos.
Não olhe-me como a tua salvação.
Sou a minha própria.
Sou tua memória sem rosto, mas jamais tua escultura narcísica
Sou tua ruína mais glacial, mas jamais teu abrigo improvisado.
Não sirvo como a alma do equilíbrio, pois sou o pranto noturno de uma vida eviscerada. Sou a histeria do vento que geme na desolação.
Não olhe-me com a altivez de quem se procura em outro rosto.
Olhe-me com tua mais profunda atenção.
Saibas que a literatura me fez Hidra de incontáveis cabeças e renasce a minha consciência nas inúmeras feições do tempo.
Em minhas retinas tudo rasteja ao perder a substância original do sustento.
A flacidez das coisas sempre exigiu
meus ossos; abro-me, então, e lentamente os retiro, montando o esqueleto de uma casa;
És estrutura sólida de uma vida.
És engenharia feita de mim.
Não te preocupes, terei sustentação;
Sou apenas alma e alma se dissolve, incorpórea.
Mas é na dissolução que mostro as profundezas que adormecem dentro dos meus olhos famintos.
Ao fitar a moradia que fiz de mim, vejo-a sangrar na carnalidade que encobre a solidez óssea.
Minha visão tem fome de vida;
devora a arquitetura de mais um dia e trucida os músculos de cada experiência empilhada.
Através das vistas, entro em casa;
Fazendo morada prévia em cada alma isolada. Tenho os olhos do fim.
Pois devoro-te, ó mundo, toda vez que entro em mim.
- Letícia Sales
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