Poética - Museu cancerígeno
"Há quem diga que certos espaços quando esbarram em nosso olhar, ganham o formato da nossa alma, e então, manifestam-se como personagens na narrativa emotiva da vida."
A casa que formou-me nos primórdios do meu eu, jazia puída no calor fétido das minhas memórias.
A arquitetura de seu ventre que outrora guardou vida; agora absorve o abandono por entre as infiltrações do tempo.
Tuas janelas sondam os olhos vazios do passado e as tuas rachaduras aspiram a porosidade das almas que aqui já pisaram.
Entrar em seu corpo é como de verme travestir-me e de entranhas nostálgicas nutrir-me (...)
Ora, não sabes que algumas moradias absorvem os momentos nelas vividos e que mesmo após a morte dos mesmos, continuam a expor-lhes os vestígios numa estranha organicidade?
"Ah, pisar sobre o piso etéreo desse espaço abandonado é como entrar no submundo escuro do meu passado.
Os ratos nele procriam e as paredes níveas descascam-me as memórias na tintura cega de um lugar que não mais me acolhe."
O corpo de concreto a putrescer
é a prova de que os melhores momentos nascem para morrer.
Engula-me como uma falsa canceriana dissolvida em nostalgias, ó vã estrutura dos meus dias.
Gostaria de mofar em suas artérias e decompor-me no esqueleto de suas mobílias.
Então jogue o cordão umbilical para que eu possa escalar de volta às memórias que me formaram dentro de ti.
Ora, o que seria a carcaça do que fomos e de quem amamos, se não um lugar que ilusoriamente ansiamos retornar para um vão recomeço gestar?
- Letícia Sales
Instagram literário: @hecate533