NO FIO DA NAVALHA
Desce a ladeira todos os dias, fareja o pão e a menina que passa.
Enquanto a morte não vem segue surdo-mudo às ofensas do mundo.
Impassível, não traumatiza a pobreza, nem reclama seu infortúnio;
senta na praça, anda nas ruas, sobe o viaduto na alegria do gingado do
passista, atravessa o túnel que vai dar no céu azul da zona sul, conquista quem pague uma bebida, conta uma piada, ela ri;
faz amizade, dança um samba, vislumbra emoção;
descola um bico pra comprar o pão.
João é assim, um sujeito de sorte porque ama a vida, é feliz com o que tem e com o que não tem, lamenta a desigualdade que lhe oferece um sorriso de lata porque o ouro a nata escondeu.
Nas vielas do seu coração suburbano o teatro nunca fecha o pano;
a pegada lhe ensinou que batata quente queima,
mas é no fogo da vida que arde o desejo.
Na escola de samba dos seus sonhos é mestre-sala;
malandro que é, não expõe seu calcanhar para os cachorros grandes
morderem; agradece aos santos e orixás, olha pro morro e sente que a ladeira de sua vida não é tão íngreme, nem seus sonhos tão altos.
Sobe o morro, fuma, relaxa.
Amanhã o asfalto quente indiferente volta a ser a passarela do seu destino.