Eu, que amei verdadeiramente o mundo e a vida,
Neles não vi nada que não fosse necessário e útil;
Uma gota de sangue que não devesse ser vertida,
E uma só lágrima derramada por uma razão fútil,

Eu, que amei o universo porque nele há um Deus,
Nele nada vi que não merecesse respeitabilidade;
Um grão de pó, ou os pensamentos de um ateu,
E a desordem que clamava por governabilidade;


Eu, que fui a língua que já descreveu o absurdo,
Dele não soube tudo o que podia ser aprendido,
Porque o inconsciente utiliza um alfabeto surdo,
E a verdade nunca teve um nome e nem ouvido;

Eu, que saí do caos inicial que preside as trevas,
E fui também a casa onde a diafaneidade mora,
Depois  plantei a escuridão das noites medievas
Mas acabei sendo o herói que libertou a Aurora;

Eu, que já me elevei a cometa e estrela cadente,
Em um céu sem tempo que pudesse ser medido,
E fui andarilho inútil pelo espaço transcendente
Sem plano de voo ou destino adrede concebido;

Eu, que fui a chuva útil e o arco-íris espectral,
E não senti muita alegria nessas performances,
Pois o útil e o belo também contém bem e mal
E não me ensinaram como usar essas nuances;


Eu, que fui plâncton, areia, alga marinha e sal,
E antes de imigrar para a terra, habitei no mar,
Também fui crustáceo e chafurdei no lamaçal,
Após ser nuvem, anjo, pássaro, e o próprio ar;
 
Eu, que nessas existências todas tive liberdade,
Pois, na simplicidade de cada forma assumida,
A natureza não me cobrava a responsabilidade
Que das espécies superiores precisa ser exigida;


Eu, que estou liberto do revezamento natural,
Que a natureza pratica para garantir qualidade,
Na vida que se desenha de maneira processual
Partindo do simples para a total complexidade;

Sou o homem, alvo final de uma evolução fatal,
Que Deus usa para dar sentido ao próprio fado.

Não sou tão complexo que não possa ser banal,
Nem tão simples que não possa ser complicado.