Sem Gelo

Não quero escrever, não me interessa jogar palavras e muito menos abrir as redes sociais, o cansaço das lives diárias, dos encontros através do Zoom, dos desencontros marcados e remarcados com uma nota de dó ré mi fá. As tentativas de juntar sílabas, a insistência em desfazer palavras, formar novas vogais numa escuta de sol e si.

A cirandinha latente e os ecos de um rock qualquer, os goles fortes e suaves de um vinho e as orquídeas amarelas. Sempre gostei mais das flores do mato, daquelas que mesmo em meio a poeira conseguem se destacar, seja pela cor ou pelo formato, gosto de árvores em qualquer estação. O ruído de um trem apitou distante e um avião voou bem baixinho, levei-me para outro lugar e um cheiro de terra molhada e gosto de chuva surgiu, pensei que era futuro ou passado.

Soca pilão, cheiro de lenha, café torrado, sereno, gotas de orvalho, peneirar o arroz, boneca de sabuco. O sol não queimava e as estrelas se apresentavam deslumbrantes em meio a escuridão, as rimas se formavam com jeito de vínculo e substituíam as palavras que não davam conta do que queriam mas ainda assim diziam.

O velho barco, o rio que despontava lá do começo, as curvas, as subidas e as descidas da velha estrada de terra, a saudade quase irremediável e os olhos amorosos e sábios da minha avó, a coragem e a ternura do meu querido avô. O avião que voava baixinho fez uma curva no ar, não pude perceber o que ele havia contornado, olhei e sem titubear fui abrindo a porta devagar.

Pensei quase sem querer nas voltas daquele tapete mágico, pude pisar firme ao perceber que os meus desejos me levavam acima daquele voo, uma lágrima escorreu lenta pela minha face e ao descer inúmeras vezes por aquele escorregador vi que ao lado dele havia uma escada, se não fosse aquela estrada cheia de curvas eu iria escrever, é só que hoje eu estou exausta e não quero escrever.