Às 18:17

Numa tarde de domingo, numa sequência de pingos de chuva a cair no telhado, fazendo companhia a uma melodia suave que toca no rádio que mal sintoniza. Meu olhar está lá, na janela que faz reflexo as ruas da vizinhança, mas eu estou mais longe. Estou deitado sobre a miríade de meus sentimentos jogados ao chão, vítimas de assassinatos, jogados a um chão riscado de giz. Pego meu violão a minha esquerda, que também está dormindo, nas canções distantes que não compôs. No sereno dos sonhos posso ouvi-lo, numa estrada que se concretiza em meus dedos. Ouço risos na casa vizinha, ouço alguém gritar pela mãe, ouço alguém chorar quando o sol se deita, num silêncio de uma casa cheia de retratos ambulantes. O céu parece sussurrar-me que o sol voltará amanhã, que passará entre as fazendas, que aquecerá os corações como fogo, que iluminará as ruas, e isso me aquece de alguma forma, estranhamente choro, com lágrimas de solidão, solidão que dorme dentro de mim e que insiste em ficar, como uma lembrança que insiste em ficar mesmo quando não há nada para lembrar. Nas tempestades do tempo, que cicatriza as ventanias e as acalma, nas águas dos mares alheios. O vento toca-me a face, tão frio, tão devastador e acolhedor, que não sei se fico ou se vou. Abraço meu violão, que também me abraça numa música cintilante... Então, num segundo repentino, estou a cantarolar como um bobo que se apaixonou, que se permitiu amar, que se permitiu construir em um chão talvez instável, de onde saúda a eternidade. Estou aqui, mais uma vez, em meu quarto, num fogo que queima na memória, cantando minhas dores, compartilhando com o vento, com as roupas jogadas no canto, com a TV no mudo, com o espelho que me encara. E tudo que quero gritar, é dito silenciosamente numa melodia que vai se compondo, se montando, se deitando nas letras, nos verbos, no sono, numa voz que se ausenta, talvez nunca ouvida, talvez virá, talvez canta comigo agora, dentro de mim. E assim presenteio o meu domingo, as 18:17 da tarde, compondo canções para cantar um dia, mas dessa vez, não sozinho.

Maria Fernanda de Araújo Dantas
Enviado por Maria Fernanda de Araújo Dantas em 24/05/2020
Código do texto: T6957024
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