Fleuma
Entre tijolos viu-se trancada
Como toda e outra pessoa a agonizar ao transcorrer do dia
Cada parte de si tornou-se criatura independente -
a mão, estrela marinha agarrada à pelúcia da cama, como se fossem as águas translúcidas dos corais
Os dedos dos pés, bastonetes esquivos, colônia esmagada à pressão das águas
Engolia e cuspia o ar como o sal do Atlântico
A encosta não lhe era morada; pertencia às profundezas
Ao negro veludo dos lares abissais
A carne nua, a transpassar as densas moléculas d'água viva
Cabelos, tentáculos sensitivos, espasmos dolorosos
Separada de seus semelhantes, peixes mórbidos, luzes fátuas
Solitários por força da vontade, necessidade visceral
Cegos de querer, inaptos à terra
Até que o seco e o concreto tornaram-se um sonho alheio, distante
O que corria nas veias nada mais era que o sabor marinho das correntes
O frescor de saber-se mole e dócil às exigências do abismo
Sua nudez era todo o oceano, a carne vibrava a candura das placas tectônicas
Os tímpanos estourados, esmagados à inexistência
Eram a indescritível alegria de não ouvir o mundo que não se fazia ouvir
Entregue ao ressoar longínquo daqueles irmãos que alçaram os braços à superfície
E que sacrificaram o profundo amor do líquido amniótico do planeta
Para a aridez apática que revela estrelas
Despertou em si, o teto úmido, ou seriam os olhos
A constatarem o cordão umbilical partido
De milhões de anos, ascendência dorida
E praguejou contra tudo que um dia já fora
A decisão profana e cruenta
Que do seio da mãe que abrangia todo o universo
Levou-a àquele quarto de isolamento fleumático
E à desgraçada consciência humana.