Todas as vezes
Muitas foram às vezes que perguntei “Em que dia semeei o horror que colho agora?”.
Para a vida, para Deus, para o que for que me ouvisse e não me ouvisse.
Todas as vezes que a miséria real e abstrata forçou suas assombrosas mãos sobre mim e abaixou a minha cabeça,
toda vez que meu coração se encontrou sozinho,
bloqueado pelas fronteiras da minha feiúra,
da minha vergonha de ser, da ideia de que as felicidades não eram para mim.
Todos os dias em que vi e quis e não pude nem o básico que todos ao redor estavam tendo.
Toda vez que eu pedi e por pedir já havia sido humilhado pelo ato de pedir,
todas estas agulhadas em público que como um boneco vivo de voodoo eu recebi das pessoas à luz do dia,
naquele momento em que vomitam o rio de arrogância que corre em cada um de nós.
Todas as vezes em que, por alguma razão, eu não fui aceito, não fui o suficiente,
toda vez que a realidade me ignorou e me deixou sem par na dança da festa que própria é,
descaronado, de-a-pé-voltado, sozinho-chorado, triste-caminhado, de-decepções-visitado.
Em todas estas malditas vezes, eu lembrava dos que jamais me humilharam,
dos meus irmãos e dos meus pais me dando o que não tinham só de desconfiarem que eu iria precisar.
Lembrava dos meus amigos, dos que sinceramente me amavam.
Todos os momentos de antipatia do universo me fizeram, na verdade, amar mais intensamente as mínimas bondades que eu encontrava.
As ajudas.
As simpatias espontâneas que nasciam como num-sem-querer dos dias.
E lembro da imagem do chão do fundo de todos os poços: é só lá que pode nascer a flor rara como a que floresce firme na alma dos bem humanos. O fundo do poço é o chão em que nascem as flores mais resistentes.
E esta flor, a gente também colhe.
Sol brilhante
23-10-18