Pedaços de mim
Sigo pela rua deserta, abraçado apenas pelo frio da noite
O assobio mecânico e sem pretensões desaparece no ar gelado
Navego no remanso daquele zumbido com vazio de preocupações
Estou em uma praia rindo de nada, com preguiça de sol
e dançando com a alma a música do mar
No bar, de madrugada, à meia-luz,
os bêbados se despendem da noitada
E sinto a vida mais leve e efêmera que a espuma do chope
Coloco o ponto final e decido não reler o que escrevi
Quebro a mudez das ideias
para abrir a janela e contemplar as luzes da cidade
Sou um velho cheio de sabedoria inútil, a melhor das sabedorias,
um velho deitado no ócio, vendo, ao longe, a sombra do rosto da morte
Sou uma criança, correndo aqui e ali, displicente com o mundo
Sou um adolescente confuso, poeta, apaixonado e sonhador
Sou um pai, brincando de caça ao tesouro com os filhos
Sou um avô, jogando damas com o neto antes do almoço de domingo
Sou um adulto, dirigindo na estrada da rotina, de volta do trabalho
Sob a sombra da árvore, à beira do rio,
tiro das águas um peixe de bom tamanho
Frio intenso de julho, cobertor, sofá,
juntinho à esposa e uma comédia na tevê
Rua escura, praia quente , bar penumbroso,
cidade iluminada, livro escrito,
Jogo de damas, caça ao tesouro, netos, filhos, almoço de domingo,
Velho, adolescente, criança, adulto, pai, avô, marido
Peixe, chope, comédia, cobertor, frio de julho
Tantos eus se colidem na irrealidade do pensamento
Sem tempo, sem espaço, sem limites, na imensidão das ideias
Os olhos abertos convidam para o pouso no que chamam de realidade
Vejo teclas, dedos, tela, fragmento de um mundo,
que se apresenta como minha extensão
Sinto o calor do início da noite, o som monótono do ar
Os tantos eus, sem tempo e espaço, dilaceram-se,
Vão, aos pedaços, para um não-lugar, uma não-época,
permitindo, com pesar, que o ser, pretensiosamente real,
continue existindo no absurdo da eternidade do presente.