Momentos de Ironia Lúcida

Não há uma gota sequer de álcool nos meus lábios

Como se eu me desafiasse a encarar a realidade de frente por uma vez

Não é fácil, abrir os olhos dessa maneira

Não apenas por causa de todas as coisas ruins que acontecem lá fora

Mas por todas as coisas ruins borbulhando aqui dentro

Não é fácil, encarar o espelho

E tomar consciência do egoísmo que empalidece minha pele como uma doença

Da ganância que me faz querer sempre algo mais

Uma espécie de "algo" tão inalcançável quanto genérico

Que não precisa saber o que busca para atropelar tudo o que ficar em seu caminho

Eu poderia me sentar à beira do lago sob o sol e sorrir

Minha vida não é ruim, não tem nada daquelas existências patéticas que só reclamam sem nada conquistar

Eu poderia ficar orgulhosa das vitórias que encontrei até aqui

Mas ao invés de comemorar o fim da guerra

Com olhos sedentos de sangue, mantenho a espada erguida

Esperando que um adversário mais forte se apresente para o duelo

Não tenho nada a dizer em minha defesa

Meus sonhos são como uma escada sem fim que leva apenas a andares mais altos

Sem nenhum prêmio brilhante aguardando no topo

Porque isso significaria que finalmente preciso parar

E não creio que minha mente seja capaz de projetar essa opção

Existe uma espécie de fraqueza intrínseca na necessidade de ser sempre forte

Uma fragilidade desesperadora em precisar provar coisas para si mesmo o tempo todo

Existe uma covardia sem tamanho em não se dispor a abrir mão de nada

Em pular de lugar em lugar sem jamais ousar imaginar encontrar o destino final

E existe uma dose imensurável de loucura

Em não conseguir relacionar felicidade com qualquer coisa calma e constante

Existe uma lua brilhante no céu anoitecido

Convidando-me tentadoramente para observar sua magia imóvel por horas a fio

Se ao menos não parecesse um desperdício de tempo tão grande

Porque eu nasci em um mundo que não admite desperdiçar um segundo

E ainda assim não faz a menor ideia de como aproveitar seu tempo

Um mundo que me ensinou a afastar-me de todas as coisas brilhantes que me poderiam fascinar

Na busca desse algo sem forma que ninguém pode alcançar

Eu não vou dormir em paz essa noite

A ansiedade não me permite, nada de novo até aí

Vou gastar momentos preciosos em que poderia estrar flutuando no mundo dos sonhos

Pensando em todos os universos que não conquistei nas últimas vinte e quatro horas

E em todas as coisas ruins que podem acontecer nas vinte e quatro seguintes

Tudo bem, é assim que toda uma geração vive

Não é como se eu pudesse transformar tudo isso num drama pessoal

Amanhã vou acordar insatisfeita e voltar a dormir insatisfeita e fingir que isso é normal

Porque senão nunca serei alguém na vida

(Que triste saber que passei todo esse tempo sendo ninguém...)

E é precisamente esse tipo de pensamento que torna tão difícil olhar no espelho

Que torna tão intragável atravessar todos os dias sóbria e lúcida.

Amanhã talvez eu me enterre em outro velho ou novo vício para esquecer

Mas hoje não!

Hoje meus olhos estão abertos

Hoje eu sei o mal que há dentro do mundo e dentro de mim

E sei das forças e fraquezas necessárias para lidar com ele

E sei da maior ironia de todas elas:

Às vezes, para derrotar o mal

A única coisa necessária é largar a espada