COQUETEL DE BARRO & MAIS
COQUETEL DE BARRO & MAIS
WILLIAM LAGOS, 7-11/12/2017
COQUETEL DE BARRO I-III 7/L2/2017
MANHOSA FLOR I-III 8/12/2017
HECATOMBE I-IV 9/12/2017
RUÍNAS VERDES I-IV 10/12/2017
ACIDEZ DE ESTRELA I-III 11/12/2017
COQUETEL DE BARRO I -- 7/12/2017
Por toda a vida buscam a grandeza
esses humanos nascidos para a morte;
a cada um recai a própria sorte:
um junta mágoas, outro tem riqueza;
um acumula bens, outro pobreza,
um se aquinhoa de glória e fama forte,
um outro em quanto atenta sofre corte:
o certo apenas é acharmos a incerteza.
E mesmo assim, no orgulho e na vaidade,
todos procuram ocultar a desvalia:
não anda a pé quem pode andar de carro...
E assim termina toda a humanidade,
nesse final que é feito de ironia
e se reduz a um coquetel de barro...
COQUETEL DE BARRO II
Eu, pessoalmente, não quero me gabar,
mas sempre preferi andar a pé...
Não fiz questão que me fizessem cafuné,
carinho aos outros preferindo dar...
A vida inteira soube contemplar
com a equanimidade em meu boné...
Não me detenho do passado no sopé,
busco o porvir, mas sem nada aguardar...
E nem sequer me refugio na esperança,
o derradeiro mal da antiga arca,
que a grega abriu, ingênua qual criança...
Mesmo fechada, do cofre se escapou
e desapontos só a esperança abarca,
em seu desdém de quanto nela se basear...
COQUETEL DE BARRO III
Eu te aconselho à idêntica atitude:
não esperar do destino que te ilude,
nem aspirar ao que a esperança alude,
cumprindo apenas o que te vier à mão,
usufruindo do esforço que te escude,
do suave desconfiar para confiar no rude;
algo melhor talvez teu labor mude,
fado ou arbítrio não mais do que ilusão.
Aí está a vida para ser vivida:
nesse gume transitório do presente
morre o futuro diariamente no passado.
Cada hora tua com respeito recolhida,
algo de ti roubando em seu assente,
mas parte dela em ti sendo deixada.
MANHOSA FLOR I -- 8 DEZ 2017
Não mais pretendo pegar meu coração
para deixá-lo na soleira de tua porta;
já o fiz uma vez, tolice morta,
uma vez foi demais dessa ilusão.
Nem rasgarei meu peito de paixão
para mostrar minha esperança torta,
para explodir meu sangue sem comporta,
que uma vez fiz sem obter satisfação.
Portanto, se encontrares algum naco
de carne junto à grade do portão,
não penses seja meu. Não o tenho mais,
meu coração se foi. Resta o buraco
(que para encher não pensaste haver razão)
e agora bate nas fímbrias do jamais.
MANHOSA FLOR II
Toda mulher é atraente e meiga flor,
até o momento de enfiar o espinho;
todo homem viril fonte de carinho,
até o momento de buscar um novo ardor.
Teu coração é imperfeito lavrador,
que amanha a alma com arado e ancinho;
parreiras planta, esperando ter o vinho
e o tempo muda em manhoso desfavor.
O que se espera nos devora o coração,
cada esperança só abrigo de outra espera,
de nada adiante tua saudade ansiosa,
porém a vida sempre traz nova ilusão,
difusa e meiga, igual que outra quimera,
mais transitória que a bela flor mimosa.
MANHOSA FLOR III
Porém não vejas aqui desilusão:
a vida é desaponto e algum desdém;
o importante é ampliar cada porém
e devorá-lo em voraz aceitação.
Cada percalço é nacarado de paixão
e nada mais que o oscilar de um vaivém;
um dia se perde aquilo que se tem,
noutro se ganha, sem saber qual a razão.
A roda gira, talvez seja a Sansara,
talvez a impertinência da Fortuna,
o certo apenas é a existência da gangorra.
Durante a vida cada golpe a gente apara,
verde teu Sol, marchetada a deusa Luna,
até que o sonho ao seu final escorra...
HECATOMBE I -- 9 DEZ 17
Essas visões que eu trago do passado,
que realmente preferia não lembrar,
são lampejos que voltam, assombrado
o casarão da morte a se arruinar...
O pior disso que temos lembrado,
nessas centelhas que se vive a recusar
são os momentos de mágoa, compassado
dobrar de sinos para nosso andar...
Não são as cálidas recordações,
por essas eu me esforço e até reclamo,
os tão fugazes momentos, breve glória,
mas o cortejo de tais assombrações,
esses fantasmas de mim que não mais amo,
alimentados pela chuva da memória.
HECATOMBE II
Diuturnamente exorcizamos tais memórias,
que lá do fundo vêm ressuscitar,
os bons momentos insistindo em abafar,
fluorescentes em tais visões inglórias.
Nós as banimos com forças peremptórias,
das boas lembranças buscando nos cercar,
mas estas tendem depressa a se esfumar,
quadros de giz pretendendo ser histórias.
E quando o coração isso percebe
e tenta firme encravar a ferradura,
(não se lastimem as patas do bagual),
superpõem-se como malhas de uma rede,
lembranças vagas como coisa pura,
toda a verdade escondendo em seus torchais.
HECATOMBE III
Diariamente executamos as lembranças
que nos afligem e maculam o porvir;
machado e adaga ficamos a brandir
nessa estóica estocada de esperanças
e desse sangue geramos as bonanças
que acalentam assim nosso sentir
e de algum modo nos devolvem o sorrir,
tão infiéis os fiéis dessas balanças...
Pois as lembranças más são persistentes,
sempre exigindo um novo sacrifício,
enquanto as boas são somente frágeis
e nesses crimes que cometemos com frequência
a geração do antanho é nosso ofício,
cristalizado em mil quimeras ágeis.
HECATOMBE IV
Mas nem todos têm desprezo de carrasco
por essas vidas que devem completar
e alguns verdugos até chegam a rogar
da vítima o perdão do próprio asco.
As lembranças guardamos nesse frasco,
vidros de culpa pelo assassinar,
que muitas vezes se irão estilhaçar,
cortando os dedos nas farpas desse casco.
Que as más lembranças são mais verdadeiras,
mas nessa luta nos fortalecemos:
sem haver mal, não se percebe o bem;
e sem saber, as mortes derradeiras
são das lembranças que tão mais queremos,
por um remorso que nem sabe que se tem!
RUÍNAS VERDES I -- 10 DEZ 17
Na fantasmagoria de minhas noites,
curtas que são, pois durmo mais de dia,
sou perseguido, às vezes, por açoites,
recantos trágicos de espectral orgia.
Não é que sejam do sexo os acoites,
(pois mil vezes tais sonhos preferia)
nem pesadelos nesses meus tresnoites,
mas lugares que eu assombro e não queria.
Retorno a bons lugares, certamente:
eu tenho minhas cidades e frequente
vou encontrar-me lá com meus amigos
(que não recordo depois de me acordar);
mas há ruínas que não quero visitar,
de um monótono labirinto sem perigos.
RUINAS VERDES II
Acesso tenho a tais verdes lugares,
nos quais vagueio durante a escuridão,
que de halogênica luz molhados são ,
sem que se saiba sequer de quais altares
ergue-se o fogo sobre os patamares
em que se pisa nesse solo de ilusão,
gelatinoso e aglutinante sem razão,
como os ladrilhos furtivos de outros lares.
Esse sonho, que não é persecutório,
mas que te engloba em suas tijoletas
ou te conduz a sendas mais secretas,
cruzada a porta glauca do ilusório
e então caminha-se ao longo da paisagem,
de cores vivas e afiadas de miragem.
RUÍNAS VERDES III
Algumas vezes, contemplam-se ruínas
de castelo antigos, fortalezas,
de fato rochas erodidas de certezas,
arenito e basalto em negras sinas.
Em outras ocasiões, abrem-se minas
em que contemplam-se das gangas asperezas,
diamantes brutos, sem clivagens de nobrezas
ou o mar depara-se ao dobrar esquinas.
Mas sobretudo, são estradas amarelas,
estreitas entre bosques encantados
e nas clareiras que no andar encontras
és contemplado por olhares de donzelas
ou por pupilas de monstros condenados
a uma perpétua mansidão de lontras.
RUÍNAS VERDES IV
De onde provém os arcanos fragmentos,
tais quais Cubos Rubik nos encaixes,
quebra-cabeças vitais que ali enfaixes,
estranhos sonhos de alheios pensamentos?
Depois retornam mais ternos julgamentos,
talvez querendo que em teu peito aches
sinais dos desvarios que ali baixes
e então se encontram os amigos mais atentos
que te encorajam, abraçam e te beijam
e que nos sonhos também tu reconheces,
mas que se extinguem como breves preces,
quando tuas pálpebras líquidas adejam
e te percebes a contemplar os tetos.
que magnânimos só te recobrem quietos...
ACIDEZ DE ESTRELA I -- 11 DEZ 17
Naquele tempo casto da esperança
em que o único beijo era a centelha
de luz sobre a saliva que se espelha,
da comissura dos lábios numa dança,
antiga, em que o sonhar somente alcança,
numa esfera de fuligem, que assemelha
os cílios a espiar da sobrancelha,
guardas de sonho, quais gradis de lança,
e então fico a mastigar ideal mesquinho
que mesmo sendo cru, ainda transborda
meu coração, que sem cessar se esfola
por esse amor esvaziado de carinho
mágica azul, assim, que me recorda
ácida estrela em sabor de carambola.
ACIDEZ DE ESTRELA II
Será que me retorna uma promessa
revestida de anil e ideal discreto
que nunca se tornou mais que secreto
berço vazio, que é bem melhor se esqueça?
Será que me retorna a luz travessa
da toutinegra esquiva e sem afeto
desse amor reduzido ao esqueleto,
que nunca carne teve que me aqueça?
Às vezes me reluz a luz de barro.
às vezes só me cora a cor vazia,
no cheiro agreste intocado da poesia,
e à promessa não feita então me agarro,
na pele calva de uma rosa sem botão
da ação sem cor de um seco coração.
ACIDEZ DE ESTRELA III
Pois vou juntar o orvalho numa pilha,
um montinho de frescura para a vida,
que o calor do verão ninguém encilha,
mas eu o encilharei com fios de geada.
Vou juntar o mormaço numa bilha
e para o inverno lhe darei guarida,
que o sereno da noite quem estilha?
Mas eu o estilharei qual como espada.
E cortarei o estio que me incomoda
com o gládio desse frio revigorante,
sem nunca mais precisar ventilador;
e assim completarei a antiga roda,
engarrafado cada instante palpitante
sem precisar ter no porvir qualquer amor.
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
Recanto das Letras > Autores > William Lagos