Memórias de um funeral
Quarto vazio, olhos rasos socados pela mentira.
A mentira que cega, estrangula e mata,
Sufoca e prende e liberta.
Armário vazio...
Ao menos não existem os rastros mortais,
Rastros mortais do cotidiano e da realidade destrutível,
Que desaba sobre os fracos e miseráveis,
Míseraveis dos ônibus lotados e a vida em branco,
Bolso cheio e mente vazia.
Estou vivendo como um cachorro
Perdido na infinidade das ruas,
Abraçando a compilação das dores
E perco-me na imensidão do que nunca vi,
E não sei o quê.
Sou um mendigo que carrega seus restos
Em um saco Infinito, na consciência de que o amor
Que teve é senão uma invenção que deu certo,
E uma mentira que virou verdade.
Os sonhos que tive?
A essa altura engoli a insônia numa xícara
Com café quente e acordei seguidas vezes
Dos meus sonhos falsos e nem um pouco proféticos...
A menos sobre a minha desgraça!
...
Desgraça concebida por debaixo
De um céu negro estrelado e absoluto...
Quando menos esperava, de súbito,
Engoli e cuspi por desprezo
Todas as emoções; Amor, ódio, tristeza,
Felicidade, a esperança que me deram,
As migalhas...
Engoli tudo numa dose amarga de vinho gelado,
E hoje talvez, eu seja o quadro velho empoeirado
Na parede condenado ao esquecimento pelo tempo, Maltratado pela lembrança e vontade,
Rumando assim como todos os outros; sábios, tolos, Amantes ou não, fumantes, religiosos, à míseria da morte.
Quando desço o morro,
O vento frio que me abraça, me beija,
É a confirmação do imenso buraco da deslealdade Preenchida com dois livros com capas rasgadas,
Folhas dobradas e estória mal contada...
Ao fim de tudo, ao menos,
Quem sabe, talvez,
Serei grato ao que não fui...
...
Das noites por debaixo das alamedas,
Ameaçada pelo brilho da lua,
Quase que imperceptível a mim,
Cego pelas portas fechadas...
De tudo que não senti,
As cordas enferrujadas do violão...
De tudo que não vivi,
A caneta sem tinta, a folha em branco...
De tudo que não pude nem que me devera,
Corri sem esperança para o mais próximo possível
Do limite queimado pelo cigarro,
E quando olho para trás vejo senão cinzas...
Acessas e queimadas pelo vão
Entre o que falei e o que não falei,
O que fiz e não o fiz.
E todo esse encanto desconsagrado
Decretou o câncer do meu pulmão,
Ou um pulmão vazio e sadio,
Mas eu sei, tudo é resto como todo o resto.
Meu livro fora narrado por intervalos
Precisos e falíveis.
O meu funeral será narrado em questão de segundos,
E eu, indefeso, serei lançado para a fração da eternidade
Junto com tudo que julguei como desejos...
As verdades, estórias lidas, sorrisos,
Cantos de pássaros, e a certeza de que não fui o que Deveria ter sido.
Mas ao menos fiz de mim uma velha estrada que tudo Passou, mas nada ficou.
E, como toda história mal contada,
Como tudo que vai, há algo que fica.
E nessa especulação do que deu certo e errado,
Bom ou ruim,
Ficam a vaidade daquilo que forjei,
O egoísmo do meu interior vazio,
O cruzamento da rua em que tudo isso nasceu,
Unindo os dois universos, o que importou.
Coisas como amores, dores, as músicas ouvidas,
E a negação dos valores morais,
E a aceitação do seu próprio paraíso,
ainda que por vezes sejas um inferno.
E nas últimas palavras, a tampa do caixão fora fechada,
A condenação efetuada,
E parto para o indefinido, assim como fiz a vida toda.