HUMANA CANOA

Faria de novo, se pudesse,

com letras miúdas uma nova prece,

mas o meu silêncio que uma montanha é maior,

grave, sisudo, sério, triste, do que melhor, pior...

O homem, que devia celebrar a vida e repartir,

achou o labirinto e nele se achou e se perdeu,

foi aonde nenhum outro foi, a se achar e fugir,

provoca matanças tudo em nome do seu Deus...

Acaso pudesse alguém fazê-lo novamente

sei que o faria com a suavidade das nuvens brancas,

aplacaria a fome interior que vem para os dentes,

transformaria em árvores suas pontudas lanças...

Ao habitar o mundo com o desejo de solidariedade

o homem teceria castelos sem masmorras, e o pão,

quem vem da terra no trigo doado em divina bondade,

dignificaria o relógio semi-perpétuo, seu coração...

Em sua lápide seria escrito um poema de Pessoa,

aqui viveu alguém pelo trabalho sem esquecer o ócio,

o mundo dos deuses atravessaria com sua humana canoa,

e, em letras miúdas, "abdica e sê Rei de ti próprio..."