BONDADE MALVADA
Não gostava de fofoca
Não admitia baderna
Só queria a calma
Só pedia a paz
E sempre alimentava
O pombo e o mendigo
Era o que devia ser
Senhora mãe de filhos
Avó ciosa dos netos
Incansável em lhes acudir
Em conselhos e pecúlio
Em palavras de boa intenção
Em rezas e orações
Pra que dor não lhes tocasse
E o azar lhes esquecesse
Era o que devia ser
Senhora que amava os seus
Não simpatizava com ciganos
Não confiava em tatuados
Não se via intolerante
Era o que devia ser
Não se ia com os negros
Não suportava macumbeiros
Não se via racista
Era o que devia ser
Não se importava com as quengas
E com novinhas estupradas
Não se via machista
Era o que devia ser
Não se dava com os outros
Que não eram os de perto
Que não estavam assim tão perto
Exóticos que pareciam
Estranhos que pareciam
Extravagantes que pareciam
Era o que devia ser
E o mundo da senhora
Bagunçava só em ver
E pensar naqueles tais
Que mostravam descompasso
Com o seu convencional
Ela então os expurgava
Era o que devia ser
Inquieta com grevistas
Odeia comunistas
Ateus e satanistas
Tudo em nome da ordem
Que lhe guarda da hora mau
E dos ciganos, dos negros,
Dos tatuados, dos macumbeiros,
Das quengas e dos outros
Era o que devia ser
No horizonte da senhora
O fazer estava dado
O sentir estava posto
O dizer estava dito
Desnecessário o pensar
Casada
Mãe
Honesta
Fiel
Piedosa
Uma senhora decente
Mulher de família
Educada para o bem
Pudica e normal
Só pedia ao deus do céu
Que a livrasse do inferno
Da desordem e do mal.