TUDO O QUE É TEU
Se te sobrar uma só pedra,
não tropece nela,
a levante do chão,
segure-a em sua mão,
siga seu caminho
como faz a uva que vai se tornar vinho,
vá, feliz, pela estrada,
depois da chuva o sol vai cobrir a mansarda
que te espera de portas abertas,
depois do musgo enrodilhado em tua bota
a teus pés lavados o descanso retorna...
Se te sobrar uma só lágrima de sal de triste beleza,
não mergulhe nela, com certeza,
nem a enxugue na manga da camisa,
esculpa com ela a pérola que te avisa
que há mais sal no mar do que em tua dor,
revele a si que qualquer perda pode se tornar amor,
depois de erguer-se diante da fábrica de cadeados
saiba que ao romper da aurora terá sido seu coração libertado...
Se te sobrar uma só poesia,
leia, até que não se lembre de lê-la e sim de vivê-la, todo dia,
repare que cada letra está em cada coisa ao teu redor,
te sentirás muito, muito mais do que se sentir pior,
faça de ti a poesia ambulante a caminhar pela cidade,
que te leiam como a criança lê em tudo a santidade,
deixe que te folheiem como um livro de páginas humanas,
que procurem e encontrem as palavras sanas
que se esconderam sob o torpedeamento da ignorância,
que saibam ler em ti o que foi perdido, a doce infância...