Do avesso
Tenho dois espelhos no quarto
E meio diário preenchido.
Passo por esses dois mil vezes por dia
Conferindo e formando minha opinião sobre essa cópia
Presa do lado de lá.
Nos espelhos me reconheço facilmente
Nas confissões escritas, não. Quase não saberia quem escreveu
Se não lembrasse que fui eu.
Se eu arriscasse formar com a palavra
Uma imagem tão clara
Quanto o meu reflexo,
Eu deixaria de estranhar essa parte interior, essa minha parte do avesso?
Não deveria ser familiar a parte de dentro?
Assim como a sombra no espelho
Ela me persegue, me imita, se fantasia
E ainda mais: ao contrário do que vejo preso na moldura
Essa parte de dentro me habita.
A parte de fora é apenas isso:
Apenas genética pura e alguns recortes da família; tenho as mãos da minha avó e os braços tortos como os da família toda
Apenas o trabalho do sol nas minhas sardas
A falta de dormir nas minhas olheiras
A minha infância impressa nas cicatrizes sobre os joelhos e cotovelos
Meu desleixo estampado numa simples presilha de cabelo
É apenas isso; não sou eu – é apenas minha carcaça e o que ela sofreu.
Se passasse mais tempo debruçada sobre o caderno
Do que encarando a moça do espelho
Eu descobriria o lado de dentro
Seja o que for que a carcaça esconde.