Nossa Senhora do Beco

Nasceu! Nasceu!

(Pais e vizinhos se abraçaram)

Fogos de artifício iluminaram nuvens.

Realizaram dezenas de orações,

consultaram médicos e benzedores.

Chás de ervas não curaram trejeitos.

Cresceu num corpo magro e feminino.

Recebeu maus-tratos em casa,

na escola, nas festas, nas igrejas.

( A cidade ficou escura, as portas se fecharam).

- Fugiu para São Paulo, New York ou Paris?

( Amigas e amigos traçaram destinos)

Voltou com nádegas de espuma

e seios fartos de silicone barato.

- Fugiu?

- Não!

Desapareceu de camisola azul,

seguindo para lugar nenhum.

Morreu.

Ninguém celebrou a Missa da Piedade

ninguém viu circular dentro da noite,

o rosto fúlgido machado de sol.

Ninguém derramou a lágrima cínica,

para molhar as flores no altar de pano.

Morreu pneumônica, anêmica, aidética.

Pálida solidônia do hospício urbano.

Morreu lentamente.

Em casa, no beco, nos braços da polícia

e na malícia dos moleques donos da rua.

Banhou-se no cuspe e no escarro dos filhos de Deus.

Ninguém ouviu relatos de amores rolados na lama.

II

Subiu aos céus iluminada pelos faróis das locomotivas.

Morreu sacrificada pela honra e glória das almas tortas.

Ó, Silvia! Santa Senhora dos Bêbados Sem Grana.

Salvai todos aqueles que nada sabem

dos martírios dos santos.

Não somos donos de nada.

Tudo é poeira ao vento.

Somos covardes.

Adormecemos nas igrejas,

ocultamos nossos pecados,

adoramos nossas máscaras.

Nada falamos dos ladrões

de lampiões acesos.

Celebramos uma vida iluminada,

cantamos com alegria todos os hinos.

Somos criminosos, safados, impiedosos.

Não beijamos as senhoras dos prostíbulos.

Sabem mais da carne humana,

do que todos os sábios do mundo.

Ó, Silvia! Nossa Senhora do Beco!

Mostrai a origem dos pecados.

Descei sobre nuvens douradas.

Agasalhai-nos no lindo manto

bordado de cristais.

Dai-nos a hóstia dos céus.

Ó, Silvia! Santa iluminada.

Livrai-nos de todas as culpas.

Cantai hosanas frenéticas.

Libertai-nos dos mistérios.

Atendei nossas súplicas.

Dai-nos forças para beijar

com lábios de lâminas,

a boca suja dos homens.

Amém.

Raimundo Lonato
Enviado por Raimundo Lonato em 08/05/2015
Reeditado em 10/05/2015
Código do texto: T5235589
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