A Morte
Meus trajes lhe apresento:
O carro na contramão
O tombo no corrimão
A queda do avião
O tiro no coração...
Tu nunca saberás
Em qual esquina irá me encontrar
A morte é uma certeza
Embora uma improbabilidade
Da natureza.
E a lista continua:
O idoso no leito
O infarto no peito
O órgão imperfeito
O câncer perfeito...
Na foice que te corta ao meio
E que perfura o teu seio
Há uma frágil donzela
Incompreendida
Perdida, porém bela...
Em teu funeral
Aceno para ti
Você me chama
Enquanto desces a sete palmos
Sob a verde grama
Embaixo da tempestade de lágrimas
De drásticas lástimas
O pêsame sobre o caixão
Teus olhos sem cor
Impenetráveis à dor
Miram a mim, em tua carcaça
Superficial desgraça
Clamam por Deus
Mas digo a vocês:
Não há nada que ele faça.
Infindável rol:
A bala perdida
A incurável ferida
A eterna partida
A mente falecida...
Aos incapazes mortais
Cerra os olhos e vê
Que não sou nada de mais
Parto o teu anseio
Para que descanses em paz
Corto a tua veia
Para que não sangre jamais
Destroço-te inteiro
Para que parta do cais
Do porto seguro humano
Para o enigma do oceano.
O paraíso há?
O inferno há?
O purgatório, hã?
Calma, quem morre por último
É a esperança
Deixo-te a agonia
Te abençoo com a ignorância
Para que viva como a criança
Desfrutando cada tic tac do relógio
E descarregando-se em poesia
Até o inadiável encontro
Comigo.
Sou mesmo um monstro de sete cabeças?
Garanto que só tenho uma
A tua...
A corrosão em ácido
O gordo flácido
O veneno tácito
O assassino clássico...
Sou dúvida ambulante
Estou mais perto do que imagina
E ao mesmo tempo distante
Diária chacina
Além de mim só eu sei o que há
Na luz no fim do túnel
Do trem fúnebre.
Homo Sapiens
Sábio só no nome
Que esplêndida ferramenta que és
Basta pôr uma arma em tua mão
Um fino sapato em teus pés
E executa a ti mesmo
Mata!
Queima!
Pisoteia!
Tiroteia!
Até a ponta de teu cigarro
Alimenta chama colossal
Corrói não apenas teus pulmões
Mas os de centenas de nações
Tolo, o que consome
E pensas que some
Na verdade acumula em lixões
O cúmulo do homem
O túmulo do homem...
Teu futuro é ser morto
Pelo que jogou fora.
Pensando bem
Nem sei se me mereces...
A quem dançou
Batendo as botas
Repousando em roupas rotas
Serei grata companhia
Calma, calma, alma
Sou antiga conhecida
Levei a tua vó
Tua mãe
Tua tia
Agora chegou o teu dia.
Trombose
Cirrose
Overdose...
Derrame sobre mim
A praga de ser maldição!
E respondo-te que sou bênção!
Sou inocente e agi em legítima defesa!
Dolo culposo:
Matei o leproso
O idoso
E o rancoroso.
Agradeça-me por eu não ter pedido minhas contas
Louva-me pelo acerto de contas
Não contas com a imortalidade
Pois minha demissão é a utopia da realidade.
Venho em alta velocidade
Em perigoso projétil
Em avançada idade
Solo infértil.
Diabretes, diabetes
Diarreias, cefaleias
Falência múltipla dos órgãos
Sou máximo divisor comum do homem
O lucro do cemitério
O trabalho do necrotério.
A morte vem em juros
Diários, mensais e anuais
Conto as moedas de teus olhos
Multa da pessoa sedentária
Da cárie dentária
Da imprudente genitália
Falta de higiene sanitária
Ausência de alma solidária
Excesso de vida solitária...
O dia vai se pondo
O fogo apagado
A planta seca
A cama vaga
O sol se põe
A lua chega
A morte se impõe.
Tens a eternidade em meu divã
Estarei à tua disposição:
Na pistola a descarregar
Na corda ao se enforcar
No líquido ao se envenenar
No pulso a se cortar
No prédio a se saltar...
Por favor, não acusa-me
Da falta de sorte
Não aponta-me
No golpe de corte
Embora eu seja
A fraqueza do forte
Embora eu esteja
No corredor da morte
Não sou responsável
Pela cadeira e o choque...
Junto à vida nasci
E a você pari
Escute aqui:
Haveria o solo
Sem os cadáveres das eras?
Haveria a árvore
Sem a terra?
Haveria o ar
Sem o respirar?
Existiria a luz
Sem quem a faça jus?
Existiria a água
Brotando dos olhos sem mágoa?
Teria o homem
Não fosse o gérmen
Das flores?
Aliás, teria o homem
Não fosse o sêmen
Do universo?
Valorizaríamos as cores
As dores e os amores
Os terrores, os odores
Os velhos senhores
As noites incolores
Os sonhos tentadores
E as lembranças
Se não fosse o fim?
Ponho o ponto final:
"A morte não encerra
Transforma
Tudo o que vive morre
A vida é um porre...".