Sobre pipas e pedras
Se canto sobre o que é banal, total, bonito,
Logo me vem um moderno a clamar que eu cale
Mas antes, hipócrita, a ensinar-me que'u fale
Que de nada mais vale estes quadros que pinto.
Pois que vi uma pipa a cruzar os céus — vi um manto
E escrevo que sei ter fugido de uma adorável criança,
Que mesmo existindo por aí a fome, aprecia a dança
E apenas vê na desbotada pipa lembrança e encanto.
Deixe-a! Que fez de tão mal o parnasiano?
Pegue a tua revolta e ponha-a de lado,
Veja cada ser que te faz, mais que tudo, amado
Lute, sim, mas pelo direito de escutar o oceano.
Afinal, por que não lutar por cada singelo segundo?
Se o que resta foi corrompido, e pede que esmureças
Zele, por favor, para que tua mente não te esqueças
Da beleza que há em cada detalhe deste mundo.
E quer seja no paraíso, Passárgada ou onde estamos
Indiferente e incerta é a paisagem em que caminho
Quando o inferno somos nós que carregamos
Pois antes quem sou, a maldade criou sozinho.
E por mais que em pedras o mundo se reduza,
Só quem se lembrar dos jardins, há de um plantar.
Então deixa em paz os apaixonados, deixe-os acreditar
Que ainda não há, para cada homem, sua meduza.
Mas antes da tola aceitação ou do teu infantil enojar,
Lembre-se, um dia era tudo poesia, não contrário
Então cante sobre tudo que há, cante o ódio e o almejar
E não te torna cego frente a nenhum comovente cenário.
—
Leitura do autor
“Nunca vi anjos. Mostre-me um anjo e eu o pintarei”
Na primeira estrofe, o autor diz que se ele canta (expressa de alguma maneira) qualquer significante do que é banal, bucólico, simples, tão logo o "moderno" (realista) pede para que não o faça, e não só isso, tenta o convencer e perpetuar que o que é escrito acerca das "banais, totais, bonitas" de nada mais valem a uma sociedade em que se considera a expressão artística (neste caso, trato mais acerca das literaturas e pinturas, obviamente) apenas como um meio de se criticar e lutar contra as ruínas da atual realidade.
E, assim, que cantar o bucólico não compete.
Na segunda estrofe há logo uma analogia que procura se opor a ideia de que não se pode mais escrever sobre qualquer coisa com a mesma dedicação, pois o autor diz escrever sobre uma criança e uma pipa, e apenas que ela vê encanto na pipa, que já voa por aí quando fugiu das mãos da criança (uma coisa, partindo da premissa de que os realistas clamam por formas de protesto na arte, redundante).
“Que por mais que haja por aí a fome, aprecia a dança.” Comprova tal oposição, quando mostra que por mais que exista motivos para nos preocuparmos, e que são, supostamente, mais pertinentes a muitas outras coisas, a criança ainda aprecia, simplesmente, a dança.
Na terceira estrofe assegura-se que o autor não vê mal algum em não se esquecer do que é belo, contrapondo o que não é, mesmo este sendo o que prevalece e parece ser mais pertinente ao derramar de nossa atenção — “deixe-a”. Então há um pedido àqueles que, julga o autor, colocaram de lado muitas singularidades importantes, como — e citado — o direito de escutar o oceano e reconhecer quem te faz querido, por conta da revolta e calor de protesto, revolução ou/e desilusão, ao dizer para deixar a revolta ao lado.
Na quarta estrofe há um apelo a todos, uma vez que o mundo está corrompido e isso atiça o homem a se desanimar e tornar-se frio, para que não se esqueçam da beleza que ainda há em cada detalhe do mundo. O apelo pede que o “moderno” zele para não se deixar esquecer que há toda essa beleza.
Na quinta estrofe, é dito que não importa a situação ou o lugar onde o homem está, simplesmente não importa, pois se tirarmos o homem, a sua razão e as suas singularidades de qualquer que seja o ambiente, não mais haverá a maldade, a injustiça, o rancor, etc. É, nos últimos dois versos, feita uma analogia ao inferno, uma vez que o autor crê que o próprio homem o criou, como o termo e espaço que caracteriza o que há de pior na existência (deuses, céu, inferno, são todas criações humanas), e em seguida confirma-se a visão de que o homem criou a ideia de maldade e por isso é ele que a carrega por onde caminha. Ou seja, depende do homem perpetuar e dissolver a ruína do mundo, fazendo depender a preservação do que é bonito no mundo.
Na sexta estrofe, primeiro diz-se que se o mundo for reduzido a pedras (frias, rígidas – ponha-se a abstração que tal substantivo permite), só quem não se esquecer que um dia houvera a beleza (posta pela comparação a um jardim) há de fazê-la perpetuar, há de mais uma vez semeá-la, mesmo que em um mundo já frio. Assim, só quem não deixar para trás o que foi um dia beleza, poderá trazê-la ao mundo. Então há outro apelo àqueles que teimam em ir contra as pessoas que ainda cantam e despojam total importância ao que é bonito, pedindo que deixem tais "apaixonados" cantarem, escreverem, representarem e valorizarem o que é “banal, total, bonito”. No último verso, é posta uma comparação em relação às pedras a que se reduzira o mundo e o homem que neste mundo vive. “que ainda não há, para cada homem, sua meduza.” Uma vez que as meduzas, segundo a mitologia, transformam o homem em pedra. Pede-se que deixem em paz os apaixonados para que estes ainda lutem e acreditem que ainda não há uma realidade em que o homem se equivale ao que há de ruína no mundo, pois isso traria ao homem as mesmas características abstratas das pedras antes distas na mesma estrofe.
Na sétima estrofe, o primeiro verso diz acerca da relação entre a opinião do leitor sobre a opinião do autor, e assim, do autor em si. É dito que o leitor não deve nem apenas acatar qualquer coisa que dita, antes de raciocinar sobre, e antecede um possível enojar do leitor, e por tal é dito para que se lembrem que houvera um tempo quando poesia era tudo, não havia aversões, distinções, exclusividades. “Tudo era poesia” se contrapondo a “tudo é contrário.” Nos últimos versos, há uma última retórica que diz ao leitor que este deve sim cantar sobre a revolta e sobre o que é revoltante, mas também deve cantar cantar sobre qualquer beleza de que se queira falar. “cante o ódio e o almejar”.
O último verso, pois, diz ao leitor para que este não se torne cego frente a nenhum comovente cenário, seja ele qual for. Se alguém olha um cenário de dor, este há de se comover e sentir as emoções que tal imagem transmite, e o autor pede que não deixem de cantar sobre isso; se este, não obstante, olhar uma flor em um jardim qualquer, ou um vaso, ou uma gentileza, poderá também se comover, e assim, experimentar as emoções que disso nasce. Pede-se uma última vez, então, que não se esqueçam e nem deixem de cantar, apreciar e valorizar tais coisas. Tornando, como julga que um dia foi, a poesia como de pertinência a absolutamente tudo.
“E não te torna cego frente a nenhum comovente cenário.” Logo, nem o parnasiano deve se tornar cego frente ao que é taciturno, ruim, feio ou digno de protesto, e nem os modernistas, realistas e afins devem se tornar cegos frente a beleza e ternuras que tanto existem, trazendo uma universalização a literatura – defendendo que devemos escrever sobre tudo, quando tudo há de ser poesia.