Réquiem para Narciso
Sangra a minha chaga incurável
Minha ferida mítica e narcísica
Minha tentação imponderável,
Meu limite do intolerável,
Automutilação afrodisíaca
De um ego psicótico e lastimável
Eu que me julgava inatingível,
Invulnerável como uma divindade
Contemplo a dimensão desprezível
Descartável e substituível
Da minha odiosa humanidade
Tão calamitosa e deplorável
No banco dos réus fui me sentar
Desejei abraçar a sentença
De me confrontar, me desnudar
Minha inocência condenar
Pela culpa da minha demência
De uma vida oca e detestável
Minhas ilusões se esfrangalharam
Agora nada mais está de pé:
Minhas armaduras se quebraram,
Todos os castelos desabaram
Nada mais restou, nem mesmo a fé
Na minha arrogância inabalável
Estou só, com minhas conclusões
Tendo como única certeza
Que eu vivi agarrado a ilusões
Alimentando mais e mais bolsões
Da mais sórdida e vil pobreza
Da minha essência inquebrantável
Estou só, a sós com meus terrores,
Com a realidade que eu criei,
Repleta de acerbos dissabores,
De perdidas paixões, sonhos, amores
Que nunca mais de volta eu terei
Pela minha fraqueza condenável
Sangra, pois, ó fétida ferida,
Mácula indelével de meu ser,
Tu que envenenaste minha vida,
Sabendo-se segura e protegida
Pelo meu hediondo proceder,
Pela minha covardia abominável
Sangra e livra-me de teu veneno,
Pois já nas minhas veias quase exangues,
A morte corre qual rio sereno
Que ao entardecer de um dia ameno,
À semelhança do sagrado Ganges
Abre caminho para o inalcançável
Que se desenha no largo horizonte
Chamando-me ao encontro de mim mesmo
Correndo célere, saltando montes,
Desembocando enfim no Aqueronte,
Para que este suplício chegue a termo
E eu possa renascer humano e instável.