A porta cansou de fechar
A porta cansou de fechar
isolava cômodos, separava gentes
era o que havia "entre"
toda a vida esteve "entre"
não era nada senão a discórdia
a pior delas: a intolerância.
O isolamento.
Teve uma ideia
fez um plano
fez um pacto com a própria ruína
chamou os cupins
devorem, destruam.
Antes pó ao vento que que arauto da solidão.
Cavem brechas, retalhem;
que não sobre em pé nada senão fantasma,
o ranger de dobradiças
que não carregarão mais nada
Os cupins devoraram.
Era a natureza deles.
Mas não lhes era da alma o destruir.
À porta sólida, imbatível,
deram um presente:
um novo corpo.
Com o tempo, na base da porta, surgiu um buraco.
A porta agora tinha um pé.
Podia sentir o vento correr.
Ventos de todo lugar.
Podia estar além de estar "entre".
a maçaneta também fraquejou
os cupins lhe comeram o suporte
o ferro já não entendia a madeira
caiu, e deslumbraram-se um par de olhos.
Viram o mundo com a luz dia.
A porta agora podia ver o sol que surgia na janela
podia ver a vizinha da frente
a vizinha fumava olhando para baixo
o que será que ela olhava?
Também agora podia ver a chuva e os raios
Podia ver a janela!
Ela também era adesivada.
Será que tinha mais adesivos que a porta?
Se treinasse a visão periférica,
veria que também o armário
era adesivado.
Tão velhos quanto ela.
A janela eternamente vendo sem ser vista,
transparente.
Nos adesivos, o vidro se fazia visível.
O armário valia apenas o que podia carregar.
Devia ser mais útil do que bonito.
Os adesivos eram sua vaidade.
Do outro lado, no resto da casa,
havia um outro mundo,
inteiro,
que agora a porta podia ver.
Dois mundos que se fundiam
pelos olhos da porta.