A SENHORA DO LAR & MAIS

FACETAS XIX – A SENHORA DO LAR I (14 JUL 06)

Bondosa é essa mulher que limpa a casa,

que lava a roupa, a louça, faz comida,

muda os lençóis e as fraldas, dá guarida

às queixas das crianças; enfim embasa

todos os quefazeres do lar, toda a rotina

da vida em domicílio, esses deveres

que repugnam ao homem: os prazeres

de quem desfruta confortável sina,

nas costas dessa esposa dedicada;

assistem jogos, bebem com os amigos,

ou leem jornais, para ficar a par

do que ocorre no mundo, dos perigos

que não vão afetá-los, sem ligar

ao que ela faz, constante e imperturbada.

A SENHORA DO LAR II –29 AGO 13

Certo é que hoje em dia há o feminismo

e tais coisas já não servem de mister,

quer ter outros papeis cada mulher,

na moderna exaltação deste modismo.

Pode até considerar um chauvinismo

ver-se obrigada, só porque o marido quer,

a desistir dessas coisas que quiser,

submetendo-se por puro perseguismo!...

E é bem comum um homem partilhar

desses deveres semimatrimoniais:

ela cozinha e os pratos lava ele,

sua virilidade em nada a atrapalhar,

mostrando aos filhos cuidados paternais,

sinal externo de amor que assim revele.

A SENHORA DO LAR III

Realmente, se trabalha a esposa fora,

nada mais justo que repartam as tarefas,

aspirador passando nas sanefas

esse rapaz, quando em casa passe a hora...

Mesmo porque já fica atrás o outrora:

há máquina de lavar, há batedeira

ou liquidificador, qualquer maneira

de restringir dos deveres a demora...

Ou à lavanderia a roupa assim se leva,

nela se espera enquanto tudo apronta...

Também se poder comer em restaurante

ou encomendar o comida em que se ceva,

que algum motoboy traz logo pronta,

sem qualquer preparação mais estafante...

A SENHORA DO LAR IV

Mas é comum também mulher sozinha,

que algum motivo separou de seu parceiro,

ou mesmo desse, de presença domingueiro,

toda a semana numa fábrica vizinha,

que só retorna terminada a ladainha

do trabalho semanal, um companheiro

que possa ser infiel ou verdadeiro,

mas traz à casa o salário que convinha...

Então os filhos dependem apenas dela,

que em geral o pai está cansado

ou realmente requer a sua atenção,

mas ela cuida do barraco na favela,

sem grandes queixas do destino acostumado

e até se alegram nesse resto de paixão.

A SENHORA DO LAR V

Até mesmo a mulher bem abastada,

com empregados para os afazeres,

a empreender tão só sociais deveres,

quer a casa conservar limpa e arrumada,

porque é seu ninho e não quer ser desprezada

pelas amigas que a visitam por prazeres:

mostra o jardim, os quadros, seus haveres,

sinais externos de uma vida bem regrada.

Alguma, é certo, toda a responsabilidade

delega às governantes e às babás,

mas não são estas que menciono nesta hora;

falo daquela que inspeciona a atividade

e sua mansão cuidada sempre traz,

demonstrando de seu lar ser a senhora.

A SENHORA DO LAR VI

Na maioria, esta domesticidade

hoje é alternada por trabalho externo,

passado o tempo em que o marido terno

toda a despesa assumia, na verdade.

Assim reparte tal responsabilidade,

equilibrando o quefazer interno

com exigências de trabalho subalterno

ou os deveres da comercialidade.

Bem mais difícil que no tempo antigo,

quando dela se esperava só cuidar

da casa e filhos e frequentar a igreja...

Sem que o esforço de conservar o abrigo

alguém chegasse de fato a reparar,

salvo se a casa desarrumada esteja...

REFORMATAÇÃO I – 30 AGO 13

Eu sempre quis reformatar minha vida,

mas não é tão simples, que apenas um programa

possa eliminar meus vírus, essa chama,

que queima internamente e que revida

a toda tentativa, por mais fida

que seja minha intenção de toda a lama

de meus venenos lavar; sempre reclama

o direito de manter sua incontida

arrogância que do berço me consome;

que a cada vez que sua influência some,

suas hifas e raízes, lentamente,

rebrotam e controlam, ocultamente,

as minhas atitudes e o meu ser

e me dominam até meu retroceder...

REFORMATAÇÃO II

Provavelmente, para me reformatar,

é preciso, inicialmente, desligar,

minha placa-mãe; não basta o coração

fazer parar no fervor desta ocasião.

Eu poderia facilmente destravar

meu coração de todo o seu ansiar;

em diálise o ligaria, temporão,

o sentimento interno em filtração.

Mas não existe hemodiálise cerebral,

que desentupa assim rede neural...

Quem sabe, qualquer dia, se descobre

como matar os vírus do órgão nobre,

sem que precise a verdadeira execução

só renovável por nova encarnação...

REFORMATAÇÃO III

Deste modo, guardo tal computação

com seus worms e cavalos bem troianos,

cada vírus a expandir males insanos,

o comportamento inteiro em revisão...

Não há antivírus ou avegê para a emoção...

Sei muito bem, ao contrário dos romanos,

que não vem do miocárdio meus enganos

e nem do fígado, na oriental afirmação...

Talvez se encontre, em nuvem eletrônica,

qualquer maneira de refazer cerebração,

que a torne pura, limpa e sem defeitos...

Não os pecados da religião agônica,

mas esses erros a que sempre são sujeitos

os indivíduos, por errônea educação...

A MAIS LONGA DAS SINAS I

eu queria um antivírus para o mundo,

minha defesa em total correspondência,

que nada corrompesse minha inocência,

nem o trabalho em que laboro a fundo;

mas eu me enredo em meu contar profundo

das respostas que recebo com paciência:

fruto talvez de pura impertinência,

preparam armadilha em que me afundo.

por mais que lute, eu não alcanço nada

do que um dia pretendi; olho perplexo

para este mundo tolo e sem razão

que, na verdade, não me deu morada,

salvo de fora, envolto em meu reflexo

até o assalto da próxima ilusão.

A MAIS LONGA DAS SINAS II

da mesma forma que no computador,

o qual, no fundo, não passa de um espelho

dos erros e ilusões do mundo velho,

há vírus na razão e em cada amor;

entram os meus por sentido condutor,

pelos ouvidos, em qualquer esgueiro,

pelos olhos, com que o mundo esteiro,

pela boca, a usufruir qualquer sabor;

entram os vírus por meio de meu tato,

na maciez ou agrura do presente,

as minhas narinas assaltam pelo olfato,

a me animar da emoção circunjacente,

em que alcanço o irreal e algum boato,

sem que a vida verdadeira me alimente.

A MAIS LONGA DAS SINAS III

em tudo isso, continente de invasão

eu permaneço, por mais grossa essa muralha

que ergo contra o mundo e que me falha,

sem realmente defender-me a posição;

assim queria um antivírus de ocasião

que sua entrada cortasse, qual navalha

e assim a tropa invasora, que se espalha,

mas não provoca mais em mim revolução.

mas ai! diuturnamente o mundo insiste

e me transforma quase insaciavelmente;

quando examino, já mal me reconheço,

porque o vírus se instalou e não desiste

de desvirtuar o que se pensa e sente,

até que ocupe inteiro o meu apreço.

A MAIS LONGA DAS SINAS IV

assim, ao longo da vida, percebi

como mudava de opiniões, inteiramente,

à luz de cada informação recente:

nem sinto mais as coisas que senti,

não sofro mais do jeito que sofri,

o quanto odiava, aceito complacente,

a quanto amava, tornei-me indiferente,

só meus remorsos conservei aqui.

e como posso saber se foi melhor

ou se me degradei completamente,

quando a mudança na alma inteira influi?

até julgo que de mim foi-se o pior,

mas como comparar, concretamente,

se já não sou o homem que já fui?

RESTOLHO I – 01 SET 13

O QUE RESTOU DE MIM, DEPOIS QUE O VERSO

JÁ ARRANCOU O QUE TINHA HOJE A DIZER?

ESTRANHA A LIDA DESTE PADECER,

QUE NEM É MEU, MAS DE OUTREM FOI CONVERSO.

ISSO QUE SEI DE MIM ESTÁ DISPERSO,

PARA A OUTRO ALGUÉM DISPOSTO A PERTENCER;

NÃO SOU A TROLHA COM QUE MURALHA ERGUER,

MAS SÓ COLHER É PROJETAR O CAL INVERSO.

ALGUMA VEZ JÁ PRETENDI SER UM PINCEL

E DAR AO MUNDO QUALQUER COLORAÇÃO,

MAS PERCEBI QUE NÃO PASSO DE ARGAMASSA,

LANÇADA AO MURO QUAL BRANCO BUREL,

QUE ASSIM ALISA A PALMA DE TUA MÃO,

ENQUANTO A COR DE TUA ALMA ALI PERPASSA.

RESTOLHO II

QUEM SOU EU, AFINAL, SENÃO A ESPUMA

QUE NA PAREDE DE TEUS OLHOS SE DERRAMA?

A CLARIDADE TUA ENTÃO PROCLAMA

OU ENTÃO EM LÁGRIMA PARA O SOLO RUMA.

SE ACEITARES A CAL QUE ASSIM SE ESFUMA,

TALVEZ QUEIRAS TEUS OLHOS NESSA CHAMA,

DURAS PALAVRAS, ÀS VEZES, EM TAL FLAMA,

TALVEZ AS GARRAS PONTIAGUDAS DE ALGUM PUMA.

SE ACEITAS O QUE DIGO E O INTROJETAS,

PARA AMALGAR-SE A TEU PRÓPRIO PENSAMENTO,

SURGE ENTRE NÓS UM RELACIONAMENTO.

MAS SE APENAS PRANTEIAS E TE INQUIETAS,

ESCORREREI NA LAVA DO MOMENTO,

NÃO MAIS QUE CINZA DE TEU PRÓPRIO SACRAMENTO.

RESTOLHO III

POIS NÃO PRETENDO TEU ROSTO REVESTIR,

EMBORA UM DIA TE ENVIASSE COR;

FOI DESBOTADA DA CAIEIRA, EM SEU ARDOR,

MASSA EM TIJOLOS PARA UM SONHO CONSTRUIR.

MAS OS TIJOLOS SÃO SÓ TEUS NESSE ASSENTIR;

CADA PALAVRA, POR FORTE O SEU AMOR,

PURO CIMENTO ENVOLTO EM SEU CINZOR,

SÓ REJUNTANDO TEU PRÓPRIO CONSENTIR.

E O QUE RESTA DE MIM, PAREDE ERGUIDA,

TRAVES E LINHAS MONTADAS FIRMEMENTE,

PARA UM FORRO E TELHADO PERMANENTE

QUE A TI SOMENTE IRÁ TE DAR GUARIDA?

SERIA EU O TREMOR DO ASSENTAMENTO

SOBRE O ALICERCE DE TEU PRÓPRIO PENSAMENTO?

ARTÉRIAS i – 02 SET 13

NOSSA VIDA É UM VEIO DE DESEJOS,

QUE PULSA AO RITMO FEROZ DE UMA DIÁSTOLE

CONTRADIZENDO A FORÇA DE UMA SÍSTOLE,

A CADA VEZ QUE TROCAMOS NOSSOS BEIJOS.

NOSSA VIDA É UMA ARTÉRIA DE CORTEJOS

A DEMANDAR DO VENTRE NOVA BLÁSTULA,

ENAMORADA ASSIM DE CADA MÓRULA,

SEM TEMAS OU DESTINOS MALFAZEJOS.

ROLAM OS BEIJOS NO REGATO COMO SEIXOS,

SÃO BEM ESTREITAS ASSIM NOSSAS CORRENTES,

TODAS BROTADAS DE DIFERENTES FONTES,

QUE AO SE ENCONTRAREM NOS FINAIS ENDEIXOS

FORMAM RIACHOS MAIS FORTES, CONCORRENTES,

CASAL DE ÁGUAS A ESCAPULIR DOS MONTES.

ARTÉRIAS II

MAS TODA FONTE SOBERBA NA MONTANHA,

POR MAIS QUE SEJA SEU CAUDAL MESQUINHO,

ACUMULA-SE NA CONCHA, EM VAGARINHO,

O SEU REUNIR, QUE SOB O SOL SE ESTANHA.

SÓ DEPOIS SURGE UM FILETE, EM BREVE MANHA,

A ESCORRER NO EMPEDRADO ALI VIZINHO,

RESSECADO NO SOL, BEM COMEZINHO,

ATÉ PRATEAR-SE POR NOTURNA ENTRANHA.

E QUANDO O SOL RETORNA, JÁ REUNIU

PELO MENOS UMA POÇA HOSPITALEIRA,

EM QUE APOLO VÊ SEU ROSTO REFLETIR

E EM SUA VAIDADE, QUEM SABE, CONSENTIR

NÃO EVAPORAR TAL BACIA POR INTEIRA,

ATÉ DE NOVO RETIRAR-SE EM SEU DORMIR.

ARTÉRIAS III

E A FONTE PULSA, AO DERRAMAR DO FIO

QUE NUM CRISTAL À NOITE SE CONGELA,

MAS AO PRIMEIRO ALBOR LOGO DEGELA,

BRIOSO NO SEU CORSO PELO FRIO...

A POUCO E POUCO A POÇA TOMA BRIO

E ENTÃO SE EXPANDE, TRANSPARENTE VELA;

LOGO DA PEDRA TRANSPÕE PEQUENA SELA

E ALÉM DERRAMA PELA FORÇA DE SEU CIO,

ATÉ TORNAR-SE RIACHO AINDA MODESTO,

A DEMANDAR SEU “DESTINO MANIFESTO”

DE APAIXONAR-SE PELA GRAVIDADE

E QUANDO ENCONTRA ORGULHO SEMELHANTE

ENGROSSA E DESCE ABAIXO, MAIS IMPANTE,

PELAS LADEIRAS EM GENTIL VORACIDADE...

ARTÉRIAS IV

JUNTA-SE ASSIM O RIACHO A OUTRO RIACHO,

SEMPRE FORÇANDO A MARGEM, ENGROSSANDO,

FUNDOS BARRANCOS AOS POUCOS ESCAVANDO,

SEMPRE EM DEMANDA DE LUGAR MAIS BAIXO

E COM A CHUVA SE REFORÇA MAIS O CACHO

DESSAS ÁGUAS ALEGRES, CINTILANDO,

AMPLA FALDA DA MONTANHA CONQUISTANDO,

RASGANDO A PEDRA COM FUROR DE MACHO!

E EM TAL AMOR, O FLUXO EM DESCIDA

PERCORRE LENTO OU VELOZ UM SÓ SENTIDO,

IMPERCEPTÍVEL, A DEMANDAR O PLANO

E SE FAZ LAGO OU RIO DE LONGA VIDA,

ATÉ O MOMENTO EM QUE SE VÊ DILUÍDO

NESSAS MIL ÁGUAS DO FERVENTE OCEANO.

ARTÉRIAS v

E QUE RESULTA DE TODA A FÚRIA ANTIGA,

DO PAULATINO ANSEIO, ÂNSIA ESCONDIDA,

FONTE EM PLANURA SIMPLES E NUTRIDA

POR OUTRAS FONTES MIL DE IGUAL CANTIGA?

E EM CARNAL FONTE REBROTA A RAPARIGA,

FÁCIL DESCENDO EM TAL DANÇA INCONTIDA,

NO DIA CASTA, DE NOITE MAIS PERDIDA

NO RIACHO RAPAZ QUE ACEITA COMO AURIGA.

CORREM AS VIDAS PENSANDO EM ASCENDER

ATÉ ALCANÇAREM O MÁXIMO APOGEU,

MUITAS REUNIDAS EM SEU LAGO GIGANTE,

QUE POUCO OU NADA PODE O FINAL RETER,

GUARDANDO CIOSO O LÍQUIDO NO SEU

COMBATE BREVE À GRAVIDADE DOMINANTE.

ARTÉRIAS Vi

MIL JOVENS REUNIDOS EM RIO CAUDALOSO,

NA VIDA INSISTINDO EM CORRER PARA A FRENTE,

CADA UM A DESCRER E DO FADO INDIFERENTE

QUE AGUARDA AO FINAL ESSE RIO PODEROSO.

E FRENTE A REPRESAS, EM CONTEXTO ARDILOSO,

GUARDAS DAS VIDAS CONTRA O FIM INCLEMENTE,

REVOLTAM-SE ENTÃO, GRAVIDADE EM SUA MENTE

ANTE DIQUE POTENTE DE APARÊNCIA IMPIEDOSO.

E REPETE-SE ASSIM, GERAÇÃO A GERAÇÃO,

SÓ NOTANDO AO FINAL O POSSANTE RUÍDO,

CATADUPA DE ESTUÁRIO, QUIÇÁ POROROCA,

NO OCEANO A LANÇAR-SE, SEM MAIS PROTEÇÃO,

O FUSO A SEGUIR NESSE SALTO INCONTIDO,

O TAPETE DO OCEANO A TECER EM SUA ROCA.

SERPENTE DE SEDA 1 – 3 SET 13

Os dias do ano ressoam em escama,

Estalam fluentes, ao longo do anel;

Em tal constrição de aparente ouropel

Renascem os dias em fúlgida chama.

E morrem no escuro que a noite reclama,

Que é só aparente o calor desse mel;

Precisa do sol a fluência do gel,

Anela-se então qual o sopro de Brahma.

A gente se acorda, na luz da manhã

E parece um presente que o céu nos tem dado,

Mais um dia a viver! Que prazer divinal!

Porém vai-se esfumando, voejando na insã

Catarata de instantes e em fulgente pecado

Que o dia acabou se constata, afinal...

SERPENTE DE SEDA 2

Carpe Diem! – já exclamavam os romanos,

Talvez com noção bem mais clara que a nossa;

“O dia aproveite!” quem melhor assim possa,

Logo a noite se estende em mortalha de panos.

Pois não é dia a mais que gentis soberanos

A nós concederam, a fazer vista grossa

À mortalidade que da vida se apossa,

Mais cedo ou mais tarde, em seus roubos ciganos.

Dia a menos, de fato, dentre nossa ampulheta,

Que ninguém se dispõe a repor nossa areia.

Talvez consigamos o funil estreitar,

Quem sabe um coágulo o sangue secreta

Trancando a passagem – e a hora se alheia,

Adiando, talvez – mas sem nunca parar...

SERPENTE DE SEDA 3

É comum se pensar ser tão só individual

A ampulheta da vida de cada ser humano

E que assim mente sã sobre corpo igual sano

Lhe possa conter o escoar natural...

Mas e se essa ampulheta contiver, afinal,

A humanidade inteira, em seu rugir profano?

Os nenês lá no topo, os anciãos nesse arcano

Mais próximo ao furo da queda mortal?

E o peso nos força a descer sempre mais,

Sem poder, realmente, culpar as crianças,

Que brincam, felizes, e assim nos empurram...

Talvez outros homens, igualmente mortais,

Ao tentar conservar suas mortais esperanças,

Com os pés nos atinjam e os rostos esmurram..

SERPENTE DE SEDA 4

Talvez a serpente é Ouroboros, de fato,

Sua cauda a morder para a ressurreição,

No eterno retorno ou em reencarnação

Sem que haja ampulheta de final desacato.

Mas os dias se escoam, enfim, sem boato;

Guardar é impossível a menor brotação,

A elétrica luz tão somente ilusão,

Que a noite está ali, em flexível contato...

Aproveitar cada dia é assim impossível:

Os dias, de fato, se aproveitam de nós,

O tempo da vida devorando em sua gula...

De seda a serpente, a fome inexaurível,

Retorcida e silente, numa esteira de nós,

Que o pescoço agasalha e ao final estrangula.

SERRARIA I – 04 SET 13

DE ONDE SAEM AS PALAVRAS DA CANTIGA.

SENÃO DA MENTE, EM CIRCUNVOLUÇÕES?

NÃO BROTA A EMOÇÃO DOS CORAÇÕES,

O CÉREBRO AS CONDUZ, CINZENTO AURIGA.

CADA POEMA RETALHA A MESMA VIGA,

SAEM LASCAS, MARAVALHAS DE INTENÇÕES,

NUMA BIRUTA RETORCIDA DE PAIXÕES,

ANEL PRESO NA MÃO FORMANDO FIGA.

E ASSIM SE VAI FORMANDO MAIS SERRAGEM,

ENQUANTO O CÉREBRO É SERRADO POR DESEJOS;

NA SERRA-FITA OS SONETOS SÃO DISPERSOS

E A GENTE LANÇA AO AR, EM MALANDRAGEM

A POLVADEIRA EM QUIÇÁ BUSCA DE BEIJOS

ENQUANTO A MENTE SE DERRETE EM VERSOS.

SERRARIA II

ATÉ PARECE SER A MENTE INESGOTÁVEL,

QUAL DICIONÁRIO PARA ENTRETENIMENTO,

EM REVERBERO DE CADA PENSAMENTO

QUE NO PASSADO SE NOS FEZ VIÁVEL.

TAL QUAL TESOURO FOSSE, SÓ E INTOCÁVEL,

REPRODUZINDO SEU DESGASTAMENTO,

RECONSTITUINDO APÓS CADA TORMENTO,

A LONGA TROVA GIRANDO INTERMINÁVEL.

MAS SONETOS NÃO SÃO MAIS QUE FINAS RIPAS;

POEMAS LONGOS CAIBROS PODEROSOS,

AS TÁBUAS SE ALISANDO SOB O ENXÓ,

ENQUANTO SOBRAM TÃO SÓ UMAS FARRIPAS,

QUE OS VERSOS SAEM SEMPRE, NUMEROSOS,

ENQUANTO A MENTE VAI FICANDO SÓ.

SERRARIA Iii

PORÉM SE TUDO FOR CONTADO JUNTO,

AS TRAVES SÃO O CÓRTEX CEREBRAL,

AS CÉLULAS CINZENTAS DO MENTAL,

AS MIL REDES NEURAIS O SEU ASSUNTO.

E SÃO NEURÔNIOS DO CÉREBRO DEFUNTO

QUE SE ESFREGA SOBRE A PÁGINA MORTAL,

NA EXECUÇÃO POEMÁTICA E FATAL

DE UM CONCEITO PATÉTICO E PRESUMPTO.

SAEM AS PALAVRAS E FICAM OS VAZIOS,

A MENTE DESPROVIDA DESSES TRAÇOS,

QUAL ROÍDA DE SÍFILIS NO OUTRORA,

OS PENSAMENTOS MAIS SUBLIMOS MEROS FIOS

E SÓ SE ENCONTRAM IDEIAS EM PEDAÇOS,

QUE MELHOR FORA TEREM SIDO POSTAS FORA.

QUIETUDE I – 5 SET 13

A massa dos salmos em broa de milho

se expande nas gretas de meu coração

preenche as artéria em feroz brotação

requer as safenas que nunca me dão

aparentemente

em exame frequente

está saudável

igual que o pulmão

A massa dos salmos em broa de milho

em bolhas explode nas gretas da mente

cantilenas sonoras em dom permanente

ecoando no cérebro em praga dolente

o eletroencéfalo

ou anencéfalo

no ultrassom

nada aparente

QUIETUDE II

A massa dos salmos em broa de milho

percorre minhalma sem ter paradeiro

relincha aos ouvidos fiel parelheiro

a língua churrasca gentil cozinheiro

o poema está lá

estala por lá

na úvula e amígdala

ansioso e fagueiro

A massa dos salmos em broa de milho

o corpo me prende igual arpoador

transtorna em farinha o momento da dor

em fel e açúcar o mais doce do amor

e rói pelos sólios

mentira dos olhos

vigias de antolhos

em canto e vigor

QUIETUDE III

A massa dos salmos em broa de milho

transforma minha carne em poema furtado

a ponta dos dedos costela de assado

a apara das unhas punhal afiado

se corta e recorta

o instante comporta

em nova retorta

um verso enlaçado

A massa dos salmos em broa de milho

destila meu sangue na tinta dos versos

vogais perseguindo consoantes em terços

rosário imutável na fé dos conversos

e então só me ilude

haver a quietude

que a boca me mude

em salmos dispersos

ORIENTE I – 6 SET 13

A manhã desvelada se acorda em palor,

anunciando em crisol palidez de nevoeiro;

o sol nunca bate no meu travesseiro,

o leito disposto ao poente incolor.

Ainda que a porta se abra ao calor,

aberta a janela ao oriente fagueiro,

patamar interrompe e desvia o luzeiro

e a velha eletrola interpõe-se ao visor.

Somente depois que da cama levanto

e abro as janelas da frente da casa

o sol se intromete em cascata de joia

e então tomo o jornal, que não traz nada santo,

somente cortando esse andar que me embasa,

as manchetes piscando sob a claraboia.

ORIENTE II

Nada existe de belo na notícia que enoja:

orienta-se o jogo em narrar malefícios,

em páginas internas quaisquer benefícios;

da editora a política os desloca e ali aloja.

Corrupção e assassínio na folha se espoja,

notícias extensas descrevem os vícios,

de alegres eventos apenas resquícios,

talvez espremidos por anúncios de loja.

Que interesse desperta que duzentas crianças

nasceram saudáveis em leitos de amor?

A criança enjeitada gera mais atenção

e se existem razões para mais esperanças,

que é só propaganda, raciocina o leitor

e a página vira, sem maior emoção...

ORIENTE III

Isso é em nós natural ou foi só orientação

que um desastre qualquer nos reclame o olhar,

muito mais que o constante e normal trafegar

dos milhares que chegam, sem ostentação,

ao aconchego da casa, que assaltados não são?

A manchete, sem dúvida, será o lento vagar

desse engarrafamento a caminho do lar,

tanto tempo perdido sem qualquer produção...

É assim pessimista a natureza humana

que as notícias do bem facilmente descarta,

a mente nutrindo com tristeza e maldade?

Que exista tendência anormal e insana

de o mal procurar, de que a gente está farta,

ao sofrer orientada a individual liberdade?

BRASIL I – 07 SET 13

“Oh, pátria minha amada, Brasil dos sonhos meus!”

Ibérica e germânica, italiana e polonesa,

africana e ameríndia, armênia e japonesa,

em lar comum de paz palestinos e judeus!...

Os que a ela destratam são do mal corifeus,

que o progresso se instala por aí, com certeza,

apesar da ambição que compõe a natureza

e os impostos desvia em proveito dos seus.

São caminhos tortuosos que percorre a nação

que, não obstante, continua a crescer,

apesar dos governos de má catadura.

Eu amo essa pátria, com plena noção,

meu povo respeito, iletrado, a sofrer

nas garras ferozes da novel ditadura...

BRASIL II

É CORRENTE A PIADA, EM SEU BOM COMPARAR:

NA TÃO CRITICADA MILITAR DITADURA,

TUDO ERA PERMITIDO, SALVO A MALÍCIA PURA

DE SEU PRESIDENTE PRETENDER ATACAR!...

HOJE EM DIA SE ACEITA, PORÉM, CRITICAR

A ATUAL PRESIDENTA, SEM GRANDE LOUCURA,

AÇÕES CONDENANDO, SEM SOFRER GRANDE AGRURA

MAS JÁ TANTA OUTRA COISA É PROIBIDO FALAR!

SE A ALGUM INDIVÍDUO SE CHAMAR “NEGRO SUJO”,

FACILMENTE SE PODE NA CADEIA FICAR,

PORÉM, SE AO CONTRÁRIO, SIMPLESMENTE O MATAR

SE RESPONDE AO AR LIVRE O PROCESSO DO CUJO!

E ATÉ UM CANARINHO JÁ NÃO POSSO CRIAR...

DENTRO EM BREVE PROIBEM DE MATAR CARAMUJO!

BRASIL III

SÃO LEIS INCONSTANTES OU MAL-INTENCIONADAS,

QUE ATÉ GENTE HONESTA FOI POSTA EM PRISÃO

POR USAR UM REVÓLVER CONTRA UM POBRE LADRÃO!

SÓ AS QUADRILHAS É QUE PODEM ANDAREM ARMADAS.

AS CRIANÇAS DE HOJE ANDAM DESCONTROLADAS,

COM OS PAIS PROIBIDOS DE APLICAR PUNIÇÃO;

SÃO ATÉ ENCORAJADAS A FAZER DELAÇÃO

CONTRA A MÃE POR LEVAREM NO TRASEIRO PALMADAS!

ENQUANTO O GOVERNO SUSTENTA OS SEM-TERRA,

QUE EM SUA MAIORIA NEM PLANTAM, NEM COLHEM,

DEPRESSA VENDENDO ESSAS TERRAS DOADAS

E PODEM OS ÍNDIOS INICIAR QUALQUER GUERRA,

BRANCO OU NEGRO MATANDO, QUE LEIS NÃO OS TOLHEM

OU POR ESTRANGEIROS NOS SERÃO CRITICADAS!...

BRASIL IV

Assim como estas, há mil distorções,

o corrupto a gozar de total impunidade;

nas grandes favelas governa à vontade

a cúpula firme de quadrilhas em ações,

que livremente comandam de tantas prisões.

Tem até tribunais condenando a impiedade

daqueles que agem com grande maldade,

simplesmente ordenando tais execuções.

Em tais atos se mostra até certa moral:

contra as leis absurdas, outra lei popular,

ostentada por drogas ao céu de azul anil.

Contudo, ainda espero assistir, afinal,

uma ordem na pátria meu conceito a apoiar

de respeito a meu povo e de amor ao Brasil...