Perdão

Ouço o som das folhas secas, esmagadas sob os meus pés; as lágrimas descem como uma represa que se rompe, carregando tudo ao seu redor.

Inspiro e expiro

Pesado e lentamente

Na esperança de acalmar meu coração,

Que se acelera a cada subida ou descida.

Há imagens fixas que o tempo não pode apagar.

Quisera eu, simplesmente fazê-las desaparecer, junto com as lembranças,

E com elas todos os sentimentos e impressões

Que suas marcas deixaram.

Mas não consigo,

E me sinto incapaz de me desvencilhar.

Talvez não queira de fato.

Talvez isso já baste

E faça parte de mim,

De quem eu sou inteiramente.

Continuo a caminhada,

Sinto a temperatura baixar.

Uma neblina me envolve e vejo distante um lago prateado

Que reflete em suas águas calmas

O oposto de tudo que estou sentindo.

Mas me recordo outra vez

Fragmentos de lembranças,

Pedaços de nossa história,

Tudo que foste e deixaste de ser.

A dor é tão profunda que chega a ser insana.

Onde estiveste durante todos esses anos e por que resolveste voltar

Apenas para dizer adeus?

Antes nunca tivesse existido...

Sinto um ódio crescente dentro de mim;

Tudo é tão injusto.

É injusto te amar quando te odeio,

Querer te esquecer quando apenas me lembro,

Quando sua ausência é presente

E sua presença faz falta.

E sinto, não apenas ouço

As folhas secas que se esmagam sob meus pés.

Sinto a dor de me partir ao meio, impotente,

E meu coração galopa acelerado,

Retumbando a cada subida e descida,

Esperando o momento apenas de dizer

O que jamais pensei ser capaz.

Minhas mãos, tão pequenas comparadas às suas,

Quando te vi pela última vez há anos,

Hoje refletem o oposto.

Uma trágica ironia.

Tudo é diferente agora,

E ainda assim me lembro

Dos gritos enquanto seguia em direção à porta.

Me lembro

Dos cacos de vidro no chão,

E sinto em minha pele a dor dela,

As lágrimas dela,

A cada ferida

Que foi aberta.

Mas ainda assim, os gritos ecoam em meio ao silêncio,

Cada vez mais alto,

Profanando a escuridão

Que envolve tudo o que ainda resta,

Tudo que ainda me resta.

Me aproximo,

E um calafrio me abraça.

Como um velho amigo,

Ele me recebe em seus braços.

O ar denso e pesado daquele lugar

De vida e dor

Me acerta em um único nocaute,

Um golpe que me leva ao chão.

Mas me ergo outra vez,

Outra vez.

E te vejo.

Simplesmente te vejo,

Quando não queria ver.

Vejo no meio da dor tudo o que queria ter esquecido,

Sejam os bons ou maus momentos,

A chegada e a despedida,

A despedida e a chegada,

O abandono,

A traição,

A agressão,

O adeus.

E nos seus olhos fundos,

Marcados de dor,

Em sua pele pálida,

Opaca,

Pegajosa,

Encontro um brilho

Que ainda não se apagou,

Que a dança da morte ainda não levou.

E você me vê,

E com assombro,

Reconheço

Que, em sua frente,

Volto a ser aquele menino outra vez,

Aquele que odiava te amar

E odiava te odiar.

Aquele menino que te via como exemplo, mesmo enquanto você ia embora sem olhar para trás.

Aquele menino que também foi deixado, junto a uma mulher em pedaços,

Totalmente perdido.

Aquele menino teve que aprender a ser a âncora daquela mulher.

Aquele menino que queria ser cuidado

Precisou aprender a cuidar.

Pois todos que deviam a ele esse cuidado

O esqueceram,

Imersos em seus próprios conflitos

E discussões,

Em seus egoísmos e pretensões.

E naquele instante,

Aquele menino com as suas mãos pequenas

Segurava as suas frias

E sem forças.

E só queria poder fazer um pedido,

Um breve e único pedido:

Não se vá.

Mas nem tudo na vida acontece como planejado.

Nem sempre podemos controlar nossos destinos,

Mesmo que vivamos entre sonhos e planos.

A vida acontece no meio desse caminho,

E não tem como evitar as marcas que ela pode nos deixar.

E ainda que as feridas sejam grandes

Ou até pequenas,

Ainda que estejam abertas,

Precisamos deixá-las cicatrizar.

E aceitar que cada cicatriz é uma marca

De algo que vivemos.

De algo que sentimos.

Pois só sente, quando está vivo.

E nesse momento eu percebo

Que a sua dança está chegando ao fim,

E você não irá mais sentir.

Mas eu sentirei tudo.

Sentirei as noites frias em que não esteve ao meu lado

E sentirei as que contou suas histórias para mim,

As que, em meio a sorrisos, me envolveu em seu aconchego

E, em meio a lágrimas, fez promessas que nunca foi capaz de cumprir.

Mas agora, diante de sua pequena figura,

Percebo como sou menor.

Percebo como somos pequenos,

Frágeis e impotentes.

Percebo o quanto a mágoa é capaz de separar

E criar muralhas intransponíveis.

Percebo que o tempo perdido

Não pode ser recompensado.

Mas percebo que tudo que perdi

Serviu de aprendizado

Para que hoje eu consiga dizer o que jamais pensei ser capaz,

Dizer o que há anos carrego preso na garganta,

Entranhado em minhas entranhas,

Preso sem opção de ser exposto,

Emaranhado entre os muros que ergui,

Pensando me proteger.

Me aprisionei

E adoeci.

Adoeci meus nervos e ossos,

Adoeci minha alma e coração.

Você me olha como se fosse capaz de dizer tudo

E diz,

No silêncio do teu olhar.

Diz tudo e ao mesmo tempo nada.

E suas mãos frias

Se afrouxam das minhas.

E uma lágrima solitária rola de um dos seus olhos.

Sua respiração soa irregular e errática.

Eu me aproximo e a enxugo com o polegar.

Seguro sua face com minhas mãos em concha

E digo,

Ou ao menos tento dizer.

Mas você, com a pouca força que lhe resta, apenas assente para mim,

Entendendo tudo.

Não dizemos nada

E dizemos tudo.

E um instante vira uma eternidade.

E um filme passa em flashes pela minha cabeça,

Como se tudo fosse diferente.

Um doce perfume de rosas e lírios campestres invade meus sentidos.

E enfim aceito,

Aceito que a sua libertação é a minha liberdade,

E a sua liberdade é o meu perdão.

Um último fôlego espirala pelo ar

E sobe em círculos rumo ao céu noturno.

Não ouço mais os sons das subidas e descidas que me apavoravam há dias,

Mas uma linha reta surge diante de mim,

Me mostrando um novo caminho,

Como uma luz que se abre ao fim do túnel.

Uma linha reta que me conduz para a paz que há tanto tempo ansiava.

E enfim, com um sussurro, me despeço.

Durma em paz, meu pai.

Eu te perdoo.

Eu te perdoo.

Eu te amo.

E sempre irei amar,

Mesmo com todas as suas imperfeições.

Pois os seus erros eram o que te definiam.

Mas agora,

Não mais.

Pois o que te define é o simples fato de ser,

E ser,

Meu pai.

Ingrid Vale
Enviado por Ingrid Vale em 11/08/2024
Código do texto: T8126366
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