E se tudo fosse de outro jeito

De tudo que já escrevi

Resta pouco por escrever

E muito sem importância alguma

Todavia, sou tão crítico de mim

Que não perdôo uma vírgula fora do lugar

E mesmo assim, às vezes escapa

Isso me aproxima do humano

O erro me parece mais uma aproximação

Da possibilidade de saber quem sou

Nunca, em toda minha presente existência

Considerei o erro uma fatalidade

Bem o contrário,

O erro sempre me pareceu uma possibilidade

Um porvir, um instante desejado, talvez

Vil, mil vezes vil

Desde que aprendi a conhecer aos homens, a vileza aparece tanto quanto a bondade. Somos humanos. Déspotas e magnânimos, tudo ao mesmo tempo

Gosto de cantores já esquecidos

E beldades nem tão beldades assim

Humano que sou

Estou, por isso mesmo

Sujeito aos mesmos sintomas

E às mesmas vergonhas

Minhas dúvidas se multiplicam

Tanto quanto as espinhas na adolescência

"Um gato caiu do telhado

Agora só tem seis vidas"

Vi na camiseta de uma linda garota

Que passava distraída com seu fone vermelho

O muro da casa do seu Raimundo

Caiu por causa das chuvas na última semana

Seu Raimundo ficou viúvo

E passa muitas horas sentado na varanda

Ridículo?

Você me pergunta se sou ridículo?

Creio ter sido ridículo algumas vezes

Quem não foi? Atire a primeira pedra!

Ser ridículo é a única permissão sem ser ridículo

Aceita café, Pequena?

As flores do jardim secaram de tanta beleza

Sem cor, a rua ficou triste e os beija -flores não aparecem mais

Seu Raimundo passa muitas horas sentado na varanda

Ficou viúvo, seu Raimundo

Era um homem alegre

Ficou viúvo, ficou triste

Passa muitas horas sentado na varanda

O quadro na parede está desbotado

Tão morto quanto a natureza morta representada

A pintura, talvez, seja a tentativa

De imortalizar a luz antes da escuridão

Os girassóis de Van Gog

Retém em nossas retinas os girassóis do mundo

Corações rígidos destroem mil possibilidades

E num segundo a felicidade pode ser apenas saudade

A verdade das coisas é só um conceito

Vago, pretensioso e arrogante

Não há verdade em nada

Essa é a única verdade

Xeque mate!

Seis horas da manhã

O despertador grita como o apito da fábrica

Os pontos de ônibus estão lotados

Todos precisam chegar

O trem parte sem esperar o idoso

Tem gente com fome, tem gente com fome

O trem da Leopoldina me veio na memória

Rascunho as primeiras palavras para um poema. Desisto

Amasso o papel, há tanta poesia nos lixos das cidades

Há mais poesia nos lixos das cidades

Que estrelas no céu

Tem gente com fome, tem gente com fome

Tem gente com fome, tem gente com fome

A pedra filosofal não foi encontrada

Os papiros egípcios escondem segredos

Que Tutankamon não ousou expressar

E morreu jovem sem ter desfrutado

Da rebeldia tão esperada dos jovens

O trem da Leopoldina apita na estação

Nas filas dos albergues

Famílias recém chegadas, dormem nas escadas

Tem gente com fome, tem gente com fome