Prelúdio de uma Dama Lunar

De repente, o crepúsculo se anuncia no horizonte

Pausadamente, a atmosfera avermelhada vai cedendo o seu espaço para um véu azul e negro

Um olhar curioso se encaminha para o alto, enquanto pequenos brilhos vão preenchendo uma lacuna desapercebida no espaço

Sem prévio aviso, contornos de uma figura se evocam entre os corpos celestes, progressivamente mais cintilante

Neste instante, passos apressados se movem levemente para o encontro daquela figura lunar lá fora

Lábios contraídos esboçam um leve sorriso, cabelos longos esvoaçam no ar entre corredores, janelas e quadros, abandonando pequenas sombras em meio a focos de luminosidade nas paredes

O colar prateado de safira pendendo inquieto, o vestido de cetim branco ondulando a cada passo, descendo as escadas enquanto a porta se aproxima, cada vez mais perto…

A paisagem se modifica, pés descalços encontram caminhos mágicos de pedra em meio a grama úmida varrida por irregulares sopros de vento

Um extenso jardim se apresenta, ornado com orquídeas azuis, griffinia ornata, alamandas, copos-de-leite, rosas, íris, trepadeiras-jade, girassóis, gérberas, violetas, flores-de-maio, crisântemos, lavandas, calêndulas, margaridas, gerânios e afins

Em volta, as copas das árvores se ocultam por vultosas sombras de formas irregulares, movendo-se de um lado para o outro, acompanhadas do farfalhar das folhas e galhos

Como em um ritual, a Dama fecha seus olhos e estende seus braços em direções opostas, caminhando suavemente entre o jardim e sentindo o toque da flora em sua pele, com pétalas se arremessando e caindo de seu vestido

Ouve-se ao longe o som da floresta, com o bater de asas acompanhadas de pequenos cantos e crocitos, o balançar de galhos e pegadas suaves pela grama, enquanto a água cor ciano flui tranquilamente entre as rochas presentes no riacho

Batidas em seu peito se intensificam à medida eu que a noite avança, a safira parece pulsar em seu peito no mesmo instante em que seus olhos se abrem e voltam-se diretamente ao corpo celeste destacado ao longe

Memórias se alastram a cada suspiro, recordações que a acompanham desde os seus primeiros passos e para além deles se sucedem como slides em um antigo projetor

Antigas vozes conhecidas rompem seu silêncio sepulcral, a consolam e instigam por alguns instantes

Involuntariamente, linhas de um fluído transparente acompanham o contorno de seu rosto e se chocam lentamente ao chão

Recordações das histórias antigas, os feitos de seus antecessores, dos cânticos e das danças ao luar ao som dos bandolins

As filhas de Cerridwen e o chamado de Fenrir

O início da conexão que a acompanharia para além da finitude, o aviso de que aquele espaço deveria ser mantido, preservado e oculto daqueles que não eram dignos

Signos e emblemas compõem os detalhes ocultos que somente o conhecedor daqueles segredos poderia revelar

Próximo dali um ancestral banco de pedra jazia como uma testemunha silente do tempo e depoente daqueles que ali estiveram

Indo à sua direção, ela se depara com um velho conhecido que a acompanhara antes mesmo de seu nascimento, parecia aguardar por sua vinda

Violino, de iniciais gravadas de há muitas gerações, cordas desgastadas pelo tempo, voluta, cravelhas e pestanas com sutis marcas, cavalete levemente inclinado, estandarte intacto

Instintivamente, ela o recolhe ao seu corpo, arco em mãos e assim inicia vagarosamente os primeiros dedilhados em seu velho confidente

Frequências ressoam das notas que se sucediam naquele tema noturno que se perfazia solitariamente

Mais uma vez, seu corpo atendia ao ritmo, com seus passos se sucedendo à medida em que as notas ganhavam vida, seus cabelos flutuando conjuntamente ao movimento circular de seu vestido

Pulsava-se a safira c os batimentos em seu peito na mesma cadência, a figura antes minguante parecia responder ao chamado das notas e cintilava cheia em meio aos pequeninos corpos celestes que a rodeavam

Enquanto isso, o jardim parecia corresponder a singularidade do momento, com sua flora acompanhando os passos rítmicos da melodia, enquanto folhas, flores e poros dançavam ao ar pelos movimentos circulares de breves rajadas de vento

Palavras ausentes, ritmo constante, sentimentos presentes, o renovar da vida, esperança e a superação da própria finitude, com o passado, presente e futuro compartilhando um lugar no infinito

De repente, o espetáculo sem plateia que antes se anunciava, neste momento atingia o seu clímax, ainda que sem aplausos

Manhã que se anunciava, encerramento do capítulo de um diário oculto pelos segredos de um jardim estelar, verdadeiro Prelúdio de uma Dama Lunar

Felipe Monte
Enviado por Felipe Monte em 26/11/2024
Reeditado em 26/11/2024
Código do texto: T8206103
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