Quem é essa pessoa que afirma ser eu?
A desordem do quarto nunca mudou. Desde a infância, fui uma bagunceira muito habilidosa, capaz de esconder todos os segredos do mundo em um único guarda-roupas: histórias sombrias, amores e traquinagens de infância.
Todos aqueles sons amplificados, o tic tac do relógio, o movimento lento ao pisar nas calçadas, a contagem de cada quadrado do chão nas ruas, pássaros batendo as asas, borboletas laranjas com manchas amarelas e brancas, o aroma da terra molhada e roupas secando no varal do quintal, o som das pedrinhas sob os pés arrastados de uma criança, o vento soprando no teto de lona e a porta de madeira rangendo. Os pingos da chuva traziam o convite ao sono da tarde. O cheiro de bolo e café feito por mainha. O cuscuz de vovô às cinco.
Todos os cheiros e sons intensos da infância me acompanham de maneira desordenada, só que agora, se perdem no caos da cidade e já não consigo saber o que é um som ou outro. Se é tic tac do meu peito ou o pulsar do relógio. Há roupas, papéis amassados e anotações inúteis aqui dentro. Há segredos caóticos e um processo de cura em andamento. Algumas roupas estão dobradas, outras na lixeira.
Já não posso mais contemplar as borboletas da infância voando; agora, todas elas se espalham inquietas em meu estômago.
Olho no espelho e são os mesmos olhos daquela que afirma ser eu. Aquela que ainda precisa arrumar a bagunça de seu peito e soltar as borboletas para que elas consigam viver um tanto mais, assim como libertei os fragmentos de mim mesma que antes estavam aprisionados como poemas trancados em garrafas.