Sonetos
Eu sei que em nós a chaga arde, lateja
na carne, em seu tecido fugidio,
e que o ser vazio sempre deseja
se completar no seu próprio vazio.
Por isso bebe copos de cerveja
e ri alto no bar, e eu desconfio
que, ao beber, o seu próprio deserto enseja
e acaba seco como um extinto rio.
Pois essa chaga é pleura insaciável,
nos rói por dentro a distraída essência,
nos faz disfarçar, mas é indisfarçável.
É em nós, é em nós que arde a existência,
de uma forma louca e irremediável,
em copos de cerveja e de emergência.
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Caído numa cama, sem saída,
escravo do desejo mais cruel,
gozo o inferno da carne envilecida,
ao mesmo tempo em que conquisto o Céu.
O meu desejo é chama destemida,
ele me torna um indefensável réu,
ao mesmo tempo me absorve a vida
do julgamento santo mais cruel.
Eu amo o corpo como a alma amo,
no corpo eu me completo, me refaço,
só no gozo a alma é pura, e eu proclamo
ser puro o que é da terra, não do espaço,
pois é no corpo que Deus, a quem conclamo,
goza o Divino e arde em mau pedaço.
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A vida é uma estação abandonada
onde treme a vertigem na passagem
do Ser, que, desconhecendo sua Morada,
vive partindo sem levar bagagem.
Pois desta vida não se leva nada,
embarca-se sem rota e com coragem
rumo à aventura astral, e de parada
em parada, recomeça outra viagem.
A vida é essa estação esparsa,
cheia de sombras ardendo na ânsia,
onde se vê lá na curva a fumaça
se apagando na trêmula distância,
e uma lágrima que um triste disfarça
viaja também dentro da lembrança.