Mendigando estrelas
Ando tão farto desta chuva gelada de realidade a me empapar as vestes, que me contento com parcos e pálidos nacos de sonhos
Mesmo os mais esquálidos e pueris, loucos e inocentes sonhos infantis, os que me fazem sorrir solto como um adolescente
Entrementes, o sono me foge do corpo, bravio e indômito, e saio na noite escura a mendigar o piscar de uma desgarrada estrela peregrina
O caricioso murmurejar da maré enchente vem, gentilmente, substituir a tua avarenta ausência, Alfonsina, que de mim há muito recolheste as tranças.
(...)
Uma frágil rolinha se despedaça em seu canto, monótono cantar que embrulha a minha falta de inspiração, as vísceras se revolvendo a me atormentar
Garimpo poemas antigos, canções de amor empoeiradas armazenadas na ampulheta do esquecimento, e me deixo embriagar pelo cheiro novo da núbil flor do araçá
Houve um tempo em que os versos me brotavam fáceis, carregados nas corredeiras desesperadas do suicida amor em que sofregamente me atirei
As veias abertas, o peito exposto, vulnerável como uma torre desguarnecida; todavia, alegre como um castor a reconstruir sua barreira de gravetos após a tempestade.
(...)
Hoje, prostrado nesta enxerga árida do desalento, declamo versos candentes ao Vento, profiro indignadas blasfêmias contra um conveniente Deus em que não creio
E tu, Alfonsina, envolta em diáfanas vestes de espumas, me acena sedutoramente do fundo do mar, linda e fantasmagórica como uma prometida e virginal huri
Transtornado, acabo de condenar o meu desânimo à guilhotina, e irei comemorar o seu fim desbragadamente, sorvendo a conta-gotas o néctar do amor que outrora me deste
E a Aurora, deusa silente e benfazeja, media a chegada do Sol, redivivo de sua última e crepuscular agonia, a me admoestar para a lonjura da estrada que ainda terei de caminhar.
Terras de Olivença, último dia do mês de Dezembro de 2019
João Bosco