Mortalha de luxo
Mortalha de luxo
O insuportável azul celeste desta manhã de Dezembro me inunda a alma, a tentar esconder de mim a apatia que me sufoca a garganta, náufrago abandonado nesta vida insensata
A tarde se faz refém voluntária de um calor escadante; na taberna soturna, um ébrio trôpego e falante, entoa uma proto-canção órfã de sintonia e divorciada litigiosamente da rima
Ao longe, observador impotente, o mar assiste as chamas de uma queimada consumir velozmente tudo o que vai encontrando, num torvelinho mortal, um festim macabro de destruição e ruína
Em que mundos longínquos te exilaste, meu amor? Pois se até o eco de minhas súplicas se recusa a me dar conta de tua ausência? Foste abduzida por uma nave zepelin extraviada?
Reli mentalmente, pra suprir teu faltar, grandes trechos da fala de Zaratustra, a buscar entendimento para os eventos da terra da Vaca Pintalgada; e só obtive o cricrilar dos grilos a me responder
Um batalhão coeso de virulentas formigas toma de assalto o meu corpo; no ovário desta noite turva e nublada, uma única e mendicante estrela mantém sua eterna vigia no céu
Pensei em me amortalhar num poema nostálgico, um daqueles que me tragam a doçura suicida de Afonsina y el mar: qualquer um capaz de dissolver em minha boca essa pílula de fel
No auge de uma ameaça depressiva, recebo a tentadora proposta de uma fantasmagórica prostituta virtual, a prometer debaixo do tapete minha pulsão de morte esconder
Arrependo-me amarga e tardiamente de não ter feito uma grande e definitiva libação com aquele bêbado loquaz, pois que assim, completamente embriagado, quiçá minha alma fosse apaziguada
Prometo a mim mesmo, amada minha, pendular da sensualidade de um tango argentino executado por um louco bandaneon apaixonado, a uma dessas tórridas salsas caribenhas faiscantes
E se esse ato desvairado for insuficiente para aplacar o meu tédio, me atirarei de cabeça numa dissertação de Spinoza, da qual nem o corolário dispensarei ; e ainda me restará revisar os passos que conduzem ao inferno descrito por Dante
Enfim, meu amor, este dia satânico e zumbi, um dos tantos a desfiar desse meu rosário cruel, se esvai como um assassino nas escondas da escuridão, a me deixar, inquieto e insatisfeito, numa cópula sacrílega com esta fria e insensível madrugada.
Terras de Pasárgada, Lua crescente de Dezembro de 2019
João Bosco