INVENTÁRIO
Pesam sobre teus ombros vergados,
Mais que a noite, teus pensamentos de treva.
Vais pela rua padecendo os cães plebeus
Abandonados de toda sorte, de toda gente.
Pensas na inerte humanidade comum.
Pensas em tuas (in)ações cotidianas.
Débil, como realmente és, intimida-se.
Nenhum gesto teu supõe-te capaz.
Não formarás uma realidade menos abjeta.
O mundo, tal como vês, imutável.
Sobre altas cordilheiras de áurea potência,
Em cúpulas invulneráveis como fortes aéreos,
O destino das nações rasteiras é escrito
Com canetas de pólvora, em pautas embarricadas
Da astúcia de déspotas, cultores de carnificinas.
Descrente, proclamas numa íntima audiência:
“Eis o que foi feito das verdes pastagens
Que preparastes para o nosso descanso!”
Segues ouvindo o monólogo dos teus olhos
Abertos ao horizonte do chão a teus pés.
Nenhuma alegria furtou tuas dores,
Já sabes que teu riso não seca lágrima,
Nem te transpõe além dos tributos:
Quaisquer que sejam, serão cobrados.
Tua palavra não preencheu tua carência,
És tão indigente como qualquer um
Com uma arqueologia de perguntas,
Todas naturalmente irrespondíveis.
Apesar da reiterada liturgia do prazer
Na voraz comunhão das carnes,
Depois do alpendre do gentil corpo,
Sabes teimosamente fechadas as portas
À nave sutil da alma inexpugnável.
Teu gozo não sacia a fome de amor.
Isso será teu grande mal, teu maior bem.
Avanças pela rua, pela noite, pelo silêncio,
Cumprindo itinerário para nenhuma terra santa.
Professas uma religião sem esperar milagres.
Estás tomado de paixão nessa tua via-crúcis.
Buscas em teus ritos silenciosos de ermitão
A chave que só tu mesmo poderás forjar
Com teus desenganos,
Com teus cães padecentes,
Com tuas noites opressivas,
Que te fazem humano ser.