A AMPULHETA
A areia desce-me pela garganta
Percorre meu tubo digestivo
A densa areia.
Por ser ampulheta,
Por ser finito,
Fico puto
Tudo é certo
Tudo é incerto
Somente a areia indiferente é infinda.
A areia desce-me pela garganta
Rascando-me, deixando-me deserto
Dentro do peito deita as unhas brancas
Faz da paisagem uma imagem alheia
Sob o escaldante sol eu vou seguindo
Suando com meu vidro transparente
Vou a lugar nenhum
Meus passos são tensos
Sobre as dunas do presente
É uma areia contínua, conspícua
Onipresença que turva a minha vista
De onde vem esta areia descente
E que descerra minha vida?
Ela me incomoda
Porque não é minha
Ela atravessa meu liso gargalo
Pesa no estômago, se deposita
Eu a carrego,
E ela não é minha
Eu a carrego,
Ou ela me encaminha?
Que serei eu além de fina areia
Que serei eu,
Apenas um vazio?
Será que depois que toda a areia se esvair
Ainda estarei aqui?
Paro no oásis. Lindo. Desconfio
Que tudo não passa de uma miragem
Eu sou elétrons, prótons, nêutrons, sonhos
No bacanal das tirânicas forças
Eu sou um mero acordo de corpúsculos
Um melancólico monstro. Um iludido.
Pergunto a Deus em profundo silêncio
Com as forças da minha alma insatisfeita
Se esta ampulheta sou eu, se sou homem
Sua resposta é o deslizar da areia