NO DIA DO MEU ANIVERSARIO
Meu pai tinha botas aladas
só hoje descobrir,
no dia do meu aniversario,
ele tinha pés de vento
na época isso não parecia uma boa maneira
de dizer adeus.
vivia distante, ausente
com olhar perdido e solitário
a expressão fixada em nenhum lugar
sim, como que vivendo
aquelas instantaneidades milagrosas
que nos fazem viajar
por todos os lugares
mesmo que estático.
Andava perdido meu pai
errando, sem rumo, sonhando
mas essa era toda a sua essência
a sua ausência.
perder-se era o seu destino
só hoje descobrir,
no dia do meu aniversario.
sempre distante, sentia-o distante
sim, quase sempre
o via ali parado, imóvel
de absorta inercia
no portão da rua
onde caía a negra chuva
e o encharco escorria por valas inundadas
até desaguar no rio
meu pai, quieto e resignado
perdido, no seu estranho recluso opcional
os olhos crispados
inundados de uma tristeza
que ao lembrar ainda me dói
uma especie de suplica silenciosa
um desejo de falar de gritar contida
silenciada.
sua tristeza urdia magoas, um fracasso solene
de uma altiva desolação
talvez fingida, mas tingida de negror e tristeza
sobretudo de triste
Às vezes via-o como um pássaro
tentando alçar voos maiores
atravessar como um relâmpago
o azul tempestuoso dos ares;
mas o que falta para seu voo
sair do sonho e se fazer real?
Sim, meu pai era um homem preso
a nostalgias de coisas que não aconteciam
do que nunca acontecera e isso
o dilacerava pouco a pouco.
então agora sei
no dia do meu aniversario
que ele usava botas ágeis
mágicas, leves e soltas
milagrosas
indo de um mundo ao outro
de estrela a estrela.
eram fabulosas sua botas
levando-o aonde ninguém mais chegou,
as pessoas não entendiam
nem mesmo eu sabia
só o víamos sentado parado
emitindo um palor cinza
de lua prata fossilizada.
por isso para ele
tudo parecia mais triste
irremediavelmente triste
só agora sei
no dia do meu aniversario
mas é tarde de mais
e tarde de mais é uma dor mais latente
mais de remorso
que me aniquila pedaço por pedaço
como as formigas esfarelando as carcaças.
Mas seja como for
existe ainda um segredo
um vinculo
que ambos partilhamos
inconscientemente
talvez indecifradamente
mas, que eu guardo como um
tesouro magico e inviolado.
Um segredo simples.
Pai, o que sentias antes
sinto-o por ti e por mim agora.
Ainda que por todos esquecido
Ainda que por todos renegado.