Coletânea - minha pequena ruína
A poesia preclara
procura a expressão,
mas sempre se depara
com a famosa prisão
da mente avara,
poesia que diz fome,
ambígua carne da vida,
canibal que come
a própria mordida.
*
Crianças desnutridas
brincam entre os tanques
e os petardos
de uma guerra imemorial.
Soldados sujos de uma
falácia urbana
soletram sua grana
burra,
nitroglicerina concentrada,
e nos crânios há
uma boca intrépida
devorando pensamentos.
*
Entre ferros retorcidos
o reclame réprobo
dos grafites da cidade
e seus heróis vendidos.
Versos concretos
nos muros encardidos.
O sol pirata arfa
sua linfa anárquica.
A faca e o salmo
laureados pelo sangue
de uma beleza crua.
Infartos de versos
pulam dentro do circuito
elíptico do poema
e os ferros soletram
sua emoldurada gangrena.
*
Há tempo para se calar,
outro tempo para dizer.
Há arte no gesto,
hesitante até,
de ensaiar um verbo,
ainda que no silêncio
ele se subleve,
colóquio de réprobos,
colégio de récitas.
Há dança até
na ossatura mais rígida,
desde que a música
lhe cifre sua compleição granítica.
Há poesia para tudo,
até para a poesia.
*
Meu coração náufrago
desvenda fronteiras
em seu oceano vago,
se doa em inteiras
realizações primeiras
e deixa de ser algo
para ser do afago
das almas verdadeiras.
*
Nosso amor é um prato vazio
sobre a mesa. Nosso amor
é o prato agraciando
a eterna fome. Nosso amor
come o prato. Nosso amor
nos come...
*
Palavras gritam ao sol
suas partituras ínclitas
na gravidade acerba dos sentidos.
Récitas como símbolos
carnes como ícones
o ventre do verbo desarrancado
a verve atávica da sintaxe réproba.
A palavra que ferve em sua fábrica
palabra-abra
que nos habita e pesa sob a pele
grave.
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