Vício

Acende a luz branca.

Ponha as luvas, se possível.

Vou esperar no couro frio

vestido de papel.

A lâmina do meu lado mostra tudo.

Teu cansaço é visível, teu suor me amedronta.

Pega a lâmina e começa logo o serviço!

Corta pela minha testa, remove meu cabelo.

Meu crânio é duro, não vai abrir

ligeiro, tua manga comprida

é pra essas horas de trampo traiçoeiro.

Você nunca gostou de se esforçar mesmo...

É meu sangue na tua roupa mas tu só vê teu suor.

Eu sei, eu também tenho dó de você.

Esse serviço não devia ser mão única,

mas você nunca dirigiu como se deve,

se eu tentar ajudar só vai ficar pior.

Larga minha cabeça assim, vazando.

Meu peito tá inchado, faz logo essa sangria.

Começa na garganta, abre minha traquéia,

desce até o pulmão.

Serra meu esterno, esse vão é espaço.

Bem melhor agora, pode descer mais.

Minhas tripas, arranca os epiteliais,

que não quero esse ardor dentro sem alarme.

Tô sabendo do que falo, tem tempo

que quero arrancar essa leveza pela raiz.

Limpa tua testa. Teu suor pingando dói

mais que a cirurgia. Sei que cê tem pressa,

mas Roma não foi feita em um dia.

A gente vai terminar na hora certa.

Por hora me deixa sangrar.

Sangrar, esvaziar, desmaiar,

acordar com meus pontos limpos.

Achar na gaze vermelha a familiaridade

que não acho num toque quentinho.

Tô de pé rápido, já posso seguir caminho.

Vou indo sem ter tempo (vontade?) de adeus,

mas vou levando a cicatriz de lembrança.