II-CANÇÃO DO DESERTOR



Pra que lutar uma guerra que nunca foi minha?
Pra que manchar o céu com minha vergonha,
e o chão com os efeitos de uma baioneta?

Fica por aqui, então, o elmo, o escudo e a lança,
o capacete, as granadas e todas as esperanças.
Fica por aqui o papel em branco, a lama e a tinta,
a lente de aumento, as incógnitas e as projeções.

Entrego a bandeira, ao fogo de uma pira,
os distintivos às covas de amigos mortos,
entrego as muletas à encruzilhada da vida,
entrego a causa a outros corações mais fortes.

Sem olhar pra trás, tudo vira clichê de cinema,
com a luz descendo num horizonte indeciso.
Vendo ao longe os aviões lançarem bombas,
e de perto, os poetas me sufocarem aos poucos.
Hoje não há sequer direção de arte,
para tornar equilibrada a cena de despedida.
Enquanto sumo, nestas terras queimadas,
o cenário atrás de mim é desmontado.

Esta guerra nunca foi minha,
por isso entrego as significantes e os significados.
Entrego a filosofia, e os paraísos guardados,
as lágrimas contidas e esqueletos de poemas inacabados.

A quem fica, para lutar pelo que não se é,
até gostaria de aconselhar, mas não tenho mais fé.
Tornar-se o que se é, ou perder-se no que nunca se foi,
é escolha de cada um, num campo de batalha artificial.
Todas as escolhas matam,
todas as verdades mudam.
Todos os espíritos envelhecem,
e mais cedo ou mais tarde,
todos os guerreiros desistem.





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Imagem: Gassed pintado por John Singer Sargent