perfurando o poço
(numa madrugada dessas
em que a gente pensa que
perdeu o sono)
queria ser apenas uma tentativa de me despir
me desnudar de tudo aquilo que me ata a esse mundo
essas coisas que delineam nossa existência
que fazem com que achemos que só isso existe
a gente em nada mais pensa
apenas na nossa casa, nosso carro, obrigações, aparência
opulência, pobreza, avareza, segurança;
tanta coisa, tanta ânsia, paciência
até que a ânsia é bom
traz pra fora um pouco daquilo que deve ser nós
do muito que a gente tem dentro, mas que não se vê,
o medo - sublime estado interior que nos revela
que tudo isso que nos ata, nos prende, nos amarra
tem seu lado bom;
e é com esse reconhecimento
que a gente consegue viver
é o equilíbrio
mas o equilíbrio é apenas o remédio pra existir
não é o remédio pra viver
cansamos de dizer, numa morte pode haver
muito mais vida que em toda uma existência
oh quanta coisa me amarra, me prende, me M O L D A
e cada vez fica mais longe de mim
cada vez mais sensações mais íntimas me soam falsas
pálidos filamentos do que devem ser dentro de mim
dentro de mim não são mais
existindo ainda muita coisa bruta
matéria prima não lapidada, virgem, não desenvolvida
beleza, vida parada, inerte dentro de mim
destinada a assim conservar-se eternamente
em favor de um condicionamento inflexível,
tirano, inexórável, que apenas permite pálidos nuances,
vagas sombras em decomposição
mutilações daquilo que podia ser "eu"
a coisa é tão impassível
que não vou poder descrever a manhã que vem vindo
pra passar longe de mim
só poderei senti-lo, o ar que respiro gostoso
uma aragem que me envolve o pensamento
vai-me untando o pensamento seco
luz chegando devagar, abrindo o peito da gente
que se sente assim como dono do mundo, dono da manhã
parece que aquele momento só existe dentro de nós
e num transe
dificilmente se sabe o que pensa
mas é isso o que quero
é isso que cada vez mais reconheço
que é tão difícil de conseguir, sentir
preciso de um jogo de palavras
de um esquema pra transmitir
ou de um efeito pra conseguir
alguma realização
do dia garantido é que não
pra não lamentar o tempo perdido
com coisa realmente de mim
preciso, isso sim,
de estudar pra progredir
trabalhar pra garantir o futuro
e cada vez mais realizar
e cada vez menos realizar-me
cada vez mais vivo pra fora
cada vez menos a vida que tenho dentro
consigo botar pra fora
vão se descrevendo uma série de círculos concêntricos
em torno da matéria prima, do núcelo
cada vez mais um ponto afastado, distante
do "eu", cuja trajetória perdida, inconstante
se faz na periferia...
são momentos como o amanhecer,
o medo, a dor, a piedade,
a alegria (num transe ou delírio),
o riso de alguém (em sublimes condições),
a revolta, a solidariedade (nem sempre),
a loucura, a idiotice, o pavor,
a música (muitas vezes fico sem pensar),
e principalmente a falta de pensamentos
que me trazem um pouco de mim,
me tiram da periferia,
me aproximam daquele ponto miúdo, ah...
-Você lembra o que tenho que pagar hoje? É só isso?
Rio, 28/10/1976