Olhei para minha gata

Olhei para minha gata, deusa e felina, como se olhasse

Para um céu entre nuvens no início daquela manhã e visse,

Entre os tons de luzes e sombras insuspeitos que se mudavam,

No firmamento, minha vida inteira como mera produção do tempo.

Abrindo e fechando os olhos vi e desvi: um súbito enredo no

Útero de todas as coisas já vividas, um entrelance resumido de

Todas as lutas e todas as vidas e todas as mortes possíveis e

Imagináveis coloridas e o preto-e-branco dos dias mais banais

Saltou-me também aos olhos no ritmo cardíaco e respiratório

Da criatura divina e biológica que agora se postava em meu colo.

Somos seres entre todos os seres: pedras, árvores, espuma de rios

Que correm em cascatas e fibras e rochas que se partem em sonhos

De amor e ódio e desencanto de todas as nossas convicções e

Devidamente ligados e unidos em conflitos e nossa necessidade.

Minha gata precisa de sua vida, e eu igualmente da minha e nua.

Eu e ela olhamos para tudo e nos despojamos: crua é a existência.

O espírito percorre séculos enquanto manejamos o calendário com

Os dedos e viramos cada folinha: as horas se escorrem pelas mãos.

Acaricio minha gata e me encarrego de escrever o poema numa língua

Que se forja dentro do código, um escrito: ela, animal mais afortunado

Que eu, em meio a bocejos e ronronares, é apenas a própria poesia.

Gato Véio Ferreira
Enviado por Gato Véio Ferreira em 18/05/2012
Reeditado em 19/05/2012
Código do texto: T3674289