Olhei para minha gata
Olhei para minha gata, deusa e felina, como se olhasse
Para um céu entre nuvens no início daquela manhã e visse,
Entre os tons de luzes e sombras insuspeitos que se mudavam,
No firmamento, minha vida inteira como mera produção do tempo.
Abrindo e fechando os olhos vi e desvi: um súbito enredo no
Útero de todas as coisas já vividas, um entrelance resumido de
Todas as lutas e todas as vidas e todas as mortes possíveis e
Imagináveis coloridas e o preto-e-branco dos dias mais banais
Saltou-me também aos olhos no ritmo cardíaco e respiratório
Da criatura divina e biológica que agora se postava em meu colo.
Somos seres entre todos os seres: pedras, árvores, espuma de rios
Que correm em cascatas e fibras e rochas que se partem em sonhos
De amor e ódio e desencanto de todas as nossas convicções e
Devidamente ligados e unidos em conflitos e nossa necessidade.
Minha gata precisa de sua vida, e eu igualmente da minha e nua.
Eu e ela olhamos para tudo e nos despojamos: crua é a existência.
O espírito percorre séculos enquanto manejamos o calendário com
Os dedos e viramos cada folinha: as horas se escorrem pelas mãos.
Acaricio minha gata e me encarrego de escrever o poema numa língua
Que se forja dentro do código, um escrito: ela, animal mais afortunado
Que eu, em meio a bocejos e ronronares, é apenas a própria poesia.