A bocarra de um monstro que se recria e se transforma
A bocarra de um monstro que se recria e se expande.
Recordando, numa noite destas, as cidades que conheci, percebi, com nitidez,
um detalhe que sempre me chamara a atenção – então tive medo.
Os prédios, os arranha-céus, que se erguem a cada instante por todos os lugares,
são dentes de uma boca enorme, sôfrega de engolir vidas e história.
Lembrei-me de Horacio, que apavorado com a urbanização do seu tempo,
querendo salvar o humano que se esvaia aos poucos da Roma imperial,
gritou como gritam suas angustias os poetas: sussurrando.
- Fugere urbem – fugir da cidade.
Não é fácil. Quase tudo o que foi criado pela genialidade humana,
surgiu nas cidades, na progressiva competição e troca de idéias, experiências,
que a proximidade obriga, mas tolhendo aos poucos a liberdade,
massacrando devagarzinho as individualidades.
Não há como escapar das ruas – molares que trituram – nem dos prédios –
caninos que dilaceram - que abrigam, aprisionam e intimidam.
As praças, os parques e os caminhos a beira d’água, quando existem,
- incisivos vacilantes que debilmente tentam esboçar um sorriso constrangido,
envergonhado pois, na realidade, não há porque sorrir.
Esta boca que nos tritura, engole e metaboliza vidas, sonhos e esperanças,
vai impondo o ritmo próprio da moderna convivência,
não mais aquele livre da natureza, do “bom selvagem”,
das plantas e animais, que nascem e vivem como querem,
mas a disciplinada marcha sincopada do progresso, que se nutre das rotinas.
Nem o Arcadismo, como forma de versejar, vingou, pois o retorno às origens,
que apregoava com tanta beleza, era e continua sendo impossível.
Quem precisa hoje “ouvir estrelas”? Só aqueles que “por certo perderam o senso”...
Fugere urbem, mas para onde? Que lugar sobrou aonde se possa viver livre e feliz,
sem limitações físicas impostas por leis? Os jardins têm tamanhos certos, determinando o espaço para as crianças correrem e brincarem, limitadas por faixas brancas,
as borboletas precisam licença para voar...
Aonde curtir a humana consciência, no convívio generoso com outras pessoas?
Sentindo o amor na sua plenitude e a paz na sua oferta de oportunidades de vida?
Pode-se escolher? Ou tratemos de nos conformar em torcer as cabeças - entre os paredões de concreto e aço que se erguem, como antolhos que dirigem o olhar só numa direção - para poder enxergar as estrelas, o céu, descobrir onde está o sol, esquecendo de vez da lua? Ver as matas nas montanhas distantes, confundindo os desmatamentos com campos prontos para arar? Ter de caminhar até a beira do mar e olhar o horizonte para sonhar encontrar sereias e enfrentar o monstrengo que assalta a nave da vida e que “trez vezes rodou immundo e grosso”?
Acrescento uma lagrima ao “mar salgado” e volto para casa, trancando a porta,
na procura do ultimo refugio que resta, sabendo que a bocarra da cidade horrenda
não irá, ali, pelo menos por enquanto, esmagar, mas apenas espreitar: o lar, a família – já frágeis redutos ainda não de todo alcançados pela anárquica e anti-humana
u r b a n i z a ç ã 0 o Eurico Borba, Ana Rech, novembro de 2011