Vislumbre sobre uma fatia da rotina

Nasce chorando, ou leva palmadas até chorar.

Quando bebê, chora por que cagou nas fraldas, ou por estar com fome. Chora por só poder mamar no mesmo peito. E a grama do vizinho é sempre mais verde.

Quando criança chora pelo joelho ralado, o mertiolate arde. Chora por perder uma figurinha, pela nota baixa.

Quando adolescente chora por não poder ir ao show idiota de um cantor pop babaca, chora por ter sido traído pela namorada puta.

Quando adulto chora, pois o time perdeu, pois o time venceu. Chora, pois o desemprego bateu a porta e a miséria a derrubou.

Enche a cara, bate o carro. Dá adeus ao próprio choro.

No funeral a mais nova viúva chora. Chega em casa, chora e chora. Liga a TV para buscar algum ânimo. Chora com o fim de “A outra história Americana”. Dorme, acorda, escova os dentes, passa maquilagem, outro dia iniciou.

Paralelamente em outros pontos da cidade, um bebê chora, uma criança chora, um adolescente chora, uma viúva chora. Um velho solitário morre em seu próprio vômito, agarrado a uma garrafa de cerveja barata, ninguém chora.

Pós funeral, a família se reúne silenciosamente em frente à televisão. Está passando um programa idiota de humor com classificação indicativa de 14 anos. Todos sentados com os ouvidos atentos ao que é passado na televisão, mas com o pensamento longe. Sérios, pensando em como a vida é curta, em qual o sentido da vida, no que vai ter para o almoço no dia seguinte, ou qualquer merda do tipo.

Ar pesado entre os presentes na sala. Na televisão mais uma derivação engraçadissíma da piada do Mário. Silêncio, somente a televisão emite som, tolices. De repente a garota sentada no meio do sofá da esquerda solta uma gargalhada. O ar pesado de esvaia por algum vão. Gargalhadas se multiplicam. Riso histérico, sem sentido. Acaba o programa.

O comercial anuncia liquidação de eletroeletrônicos e promoções do mercado. Maria lembra que tem que ir comprar pão no dia seguinte.

Depois dos comerciais, inicia o telejornal anunciando que Dona Geórgia morreu.

“Quem porra é dona Geórgia?” Pergunta o velho do lado esquerdo do sofá.

“Quem se importa?” Resmunga um outro.

Alguém chora, não ali na sala, mas em algum lugar. Adeus Geórgia.

Todos dormem. Acordam. Pasta de dente, café da manhã. Maria vai comprar pão. Um novo dia.

Beckerf
Enviado por Beckerf em 22/08/2011
Código do texto: T3175953
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