DEZ "TEXTÍCULOS" IV

- I –

PRAZER DÁ VERTIGEM

Prazer dá-me

Vertigem, ah, mas dá-me...

Nada melhor do que

Enrustir a voz da alma

Na esfinge sangrenta da carne:

Devora-me

Ou arde-me!

- II -

NECESSIDADES SAGRADAS

O arremedo de santo

Fugiu d’um terror demente

Da estatura do andor

O intestino desandou

E o santo manchou o manto

Do seu sagrado fedor

Um horror santo

Pois teve quem beijou o manto

Milagre: sentiram seu bento sabor

- III –

O CEGO, O CÃO E A PEIXARIA

O cão-guia desorientado

De tanta perfumaria

Caiu salivando no buraco

Bem defronte à peixaria

O seu cego foi levado junto,

Catando cavaco

Os dois, buraco abaixo...

O cego sentiu na pele

Do mal que um mal cheiro trazia

Porque o escuro da vala

Ah, para ele isso nada dizia...

Mas a noite foi ficando fria: o cão, perdido,

Gania no fundo das trevas

O cego difundia risadas (de ironia)

(E o peixe, sem olhos ou voz para nada, fedia)

- IV –

DIA APÓS DIA, APÓS DIA...

Quando todo dia é o mesmo dia

Cada mesmo dia, ao final do dia

Me anuncia: ou dá ou desce

(E eu desço, virgem, de cara sombria)

Vem a noite que me desalinha e tece

Por fim confusão e diz-que-diz

E uns sonhos à revelia...

Haverá o dia que não descerei... Um dia

Em que darei logo o que o dia me pede...

E este dia será, enfim, o “outro dia” que tanto esperei

- V -

NINGUÉM FAZ NADA (NEM EU)

Não espero mais nada

As cores podem ser todas roxas, amarelas...

Os pássaros podem voar sem asas

Feito balas de canhões...

Não há mais compromisso com nada

Então fica a natureza desobrigada

Das primaveras, invernos e que tais estações

A humanidade já pode (e deve) não ter esperança

A barca está furada

E a água vaza, sagrada,

Pela popa da arca da aliança

- VI –

LOUCURA MATA A GENTE

não é a loucura que mata a gente.

loucura sincera é bálsamo.

o que mata (aos poucos) é a consciência da própria escravidão.

mata mais ainda

quando, supondo-nos livre, caímos na contradição da servidão

contradição que dói mais que facada.

isso sim enlouquece...

mas daí não resulta em loucura sincera...

(está aí: essa loucura sim, mata a gente)

- VII –

PAGO QUANDO PUDER

sem a menor exasperação

cá escrevo que não escrevo

(devo-me, não me nego

pago-me quando puder)

- VIII –

DESAPRENDER A CHORAR

é a lágrima ressequida

que não descai.

que não soergue. renega-se.

é a gota morta, dessalgada

é água desobrigada

da empreitada deleitosa do mar...

é tornar a alma

desertificada:

desaprender a chorar

- IX -

AUSTERIDADE:

um sol trancado no calabouço.

- X –

DESCONTROLE

não houvera dia, hora ou minuto

existira sequer segundo

em que meu sujeito bruto não borbulhou

feito um ovo quebrado e devoluto

crespando clara e gema

na oleosa frigideira obscura

do espaço absoluto