Irritação Vespertina

Alguém já se sentiu

Como se todas as palavras já houvessem sido ditas

E não existisse razão para mover os lábios?

Alguém já sentiu

Como se a estrada acabasse

No meio do percurso

E não houvesse no próximo passo

Nada além da ausência

Inerente a todo fim?

Alguém já sentiu

Como se todas as descobertas importantes

Houvessem sido feitas muito antes de seu nascimento

E tudo o que fizesse não passasse de imitações inconscientes

Sem qualquer valor verdadeiro?

Alguém já sentiu

Como se o mundo fosse pequeno demais

Para acolher novas ideias

Para compreender outros pensamentos

Para construir coisas diferentes?

Uma estrada não deveria ter fim

Em um mundo redondo

Mas ainda velejamos com nossas caravelas

Rumo a abismos nos cantos do planeta

Inconscientes de nossa própria consciência

De que jamais poderíamos ter tomado outro rumo

Sinos tocam e anunciam um fim

Tão próximo do começo

Que parece ter chego cedo demais

Nem deveria nos espantar o fim do espetáculo

A nós que fazemos parte de um ciclo tedioso

Que achamos divertido

Por não conhecermos nada além disso

Insistimos em palavras já ditas

Descobrimos coisas que há muito não são novidade

Vivemos o mesmo começo, meio e fim que tantos outros

E continuamos a pensar que fazemos grande coisa

Talvez porque a grandeza nos seja abstrata demais

E tomamos referências absurdamente pequenas

Às vezes parece que todos os mistérios da vida

Se poderiam resolver em um só dia

E então, nada mais haveria a se fazer

A não ser esperar por algo mais que nunca virá

Quantos momentos sublimes de descoberta cabe a um humano ver?

Pode-se mesmo deixar uma marca significativa em nosso solo doente

E continuar procurando novidades

Como se aquilo não fosse suficiente?

Se for arrogância querer descobrir sempre

Coisas cada vez mais relevantes

Então desejaria que fôssemos todos arrogantes

Confiantes de que somos capazes de desvendar novos mistérios

Ao invés de repetir padrões obsoletos

Distantes de uma realidade que muda demais

Para ser regida por leis estáticas

No fundo, talvez o incômodo pela falta de mistérios

Não passe de irritação vespertina

Mas a vida só é simples

Para aqueles que não desejam ir além

Daquilo que lhes é permitido ser

E eu escolhi a complexidade

Mesmo que o preço seja alto

E ciente de que encontrarei muito mais interrogações

Do que exclamações

E muito mais reticências

Do que pontos finais

E assim, talvez encontre novas palavras

E pedras para continuar a construir minha estrada

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