Espelhar
Quantas e quantas vezes devolvo o olhar que me fita:
se de dor, de mágoa, revolta ...tristeza quase infinita
ou se é de alegria, amor, paz santa e bendita...
Tantos passam sem me notar
aqui, quieto, inanimado, nao lançam segundo olhar
e passam tesos, empertigados, com majestade no andar
outros despercebidos, curvados, cansados, doridos
escondem-se de si mesmos, olhares perdidos
e se por acaso me veem, fogem num lance furtivo.
Ah...os que me fitam...querem que lhes devolva a altivez,
o garbo e a beleza, mas nao querem a mesquinhez
nem tão pouco a perfidia, muito menos a insensatez
que os ronda e a eles adere, como cola
pelos céus, dizem alguns...todo mundo me adora!
Fita-me o pobre, o rico, o feliz e o aflito
e a todos sem exceção, mostro a que vem, porque se vão.
Estranho meu caro amigo, a ti que tanto me fita
nao tens a lucidez de mirar alem de tua tez
e penetrar no olhar que devolve tua desdita.
Nao percebes que o que ves é teu âmago, teu eu
que por mais mintas a ti mesmo, está impresso
em tua alma, teu espirito, teu coração funesto
os ódios, o egoismo, toda maldade e descrença
que carregas em ti como sentença?
Há os me miram, e veem poesia
luz, alma em festa, que alegria
a estes queria ter mais tempo, ficar mais perto
todavia, nao posso ter preferencia, sou objeto
de refletividade apenas, nada mais.
Mas esses olhos, que me miram e se fitam
deviam ter mais cuidado no que espiam
quem sabe assim, nem todos me culpariam
por devolver o reflexo apenas, do que é mostrado
por que fogem de mim, como se fosse eu culpado
se a diferença é gritante entre o que pensam
e o que lhes mostro em retorno?
Espelha tua alma, ao fitar-se no espelho
reflete quem és, ao mirar teu irmao
mas nos olhos deste tens mais compaixao
que quando mergulhas em teus proprios olhos.
E continuo, aqui, silente, no meu lugar
se sou somente espelho...cumpre-me: espelhar...