A Criatura e o Criador

Criamos Deus a nossa imagem e semelhança

Demos-lhe o que mais almejamos nesta vida:

O Poder – o domínio sobre todas as coisas,

Controle remoto sobre os acontecimentos,

As sensações, os espaços-tempo e o universo.

Instituímos-lhe a ira, a raiva e a vingança.

Alimentamos seu Ego: tornando-o o centro de tudo.

Deus, assim como nós, satisfaz-se com a adoração

Dos outros por si, precisa que o tempo todo seja glorificado,

Vangloriado, idolatrado – é narcisista como seu criador.

Quer sempre ser o centro das atenções,

O assunto das conversas, o conteúdo dos livros...

Necessita ser lembrado, jamais esquecido.

Criamos templos em seu nome, catedrais para sua luxúria.

Fizemos cruzadas sanguinárias em sua defesa,

Matamos, apedrejamos, desprezamos, ignoramos

Todos os que não se deram conta de sua autoridade,

Todos os que não sentiram sua presença ubíqua,

Todos que ousaram rebelar contra seu despotismo.

Impregnamos-lhe o machismo exacerbado

O preconceito e a discriminação com a pluralidade,

A diferença, as opções sexuais e fetichistas...

Concebemos um Deus que se arrepende,

Que só é caridoso com quem se sacrifica por ele,

E vingativo com os que não o obedecem.

Que brinca de gangorra com nossa vida...

Como se fossemos fantoches de seu teatro existencial...

Construímos Deus ao longo de milhares de anos,

Através de experiências várias, depois de tantos deuses

Que serviram de modelagem e fôrma.

Nossa imperfeição deu origem ao perfeito:

A nossa criatura é eternamente imortal,

Infinitamente onipotente, oniscientemente inexorável,

E onipresentemente hermética.

Tudo o que infelizmente não conseguimos ser.

Fomentamos em seu coração e na sua mente

O sentimento de ingratidão e orgulho.

O desejo maquiavélico de ser dono, de tomar posse.

E a criatura acaba por esquecer-se do criador!

Rebela-se, usando seu poder de dominação,

Sua capacidade manipulável de alienar,

E apodera-se da nossa existência...

Escraviza-nos, cerceia nossa liberdade,

Condiciona-nos a uma vida de peregrinações,

De pudor, de retraimento, de negação, de inferioridade.

Proíbe-nos do que a vida tem de melhor...

Cria histórias pavorosas e apocalípticas,

E manda, por diversão, o Diabo, outra criação humana,

Vir, com seus malabarismos infernais, nos atormentar...

Por fim, ainda nos fez acreditar,

Abduzidos pelo fanatismo intransigente

E pela cegueira fundamentalista e auto-flagelante,

Que foi ele quem verdadeiramente nos criou...

Ou seria eu - a criatura que quer rebelar-se e domar o criador?

(Escrito em 20 de maio de 2010)