Primeiros Últimos Dias
Acordei inchado
Caído na adega de minh'alma
Embriagado e nu
Acordei caído no chão da vida
De frente ao tal espelho
Passados os gemidos
De pranto e medo
Um gole d'água fresca
Respirei, encarei-o
Ele, o espelho
Rugas, marcas do tempo
Tempo passado, perdido
Atirado aos porcos
Busquei apenas sensações
E algumas emoções
E dessas, apenas as passageiras
Nada toquei
Pois que só se toca com a alma
Hoje sei
Posso ainda cortar-me com o vidro da vida?
Posso fazer dela fêmea?
Quero hoje, tocá-la
Sentir-lhe os odores
Dividir com ela, o que resta
O tédio e o resto
Um resto de corpo, um resto de vida
Sem muita gente
Sem saber o que há no fim da estrada
Sem vaidades
Pois que ela se foi
Como que a buscar de volta o viço e a graça
E escorreu-se com o viço e com a graça
Para o ralo do "para sempre"
À frente, o bueiro
Para qual a cada dia posso escorrer
Piso na estrada pela primeira vez
Com os pés da consciência
Sigo agora sem truques, nem subterfúgios
Sem maços de cigarro
Nem apetrecho algum que me torne mais tragável
Sem frases feitas
Nem sorrisos dados só com a boca
Sem abraços frios
Sem expectativas de olhares nas ruas
Sem marcas na etiqueta da camisa
Ouço o tempo a pingar
Vejo-o pingar, pingar, até afogar as vidas
Todas as vidas
As pensadas e as vividas,
A exemplares e as desvalidas
Logo hei de perder-me
No cio da morte
Dela verei o rosto
Corpo, odores, sabores
Com ela copularei
Mas não a quero ainda
Ela não me excita, ainda
Um passo em falso
E escorrego no bueiro da vida
E caio no lodo do desconhecido
Vivo cada dia
Procurando sentido
Em cada coisinha
Nem sempre encontro
E quando encontro
Um sorriso sobe ao rosto
Indeciso, trêmulo, amarelo
Acordei para a vida
Nos últimos dias, da vida
Ouço a goteira do tempo
Caminho sem enxergar
Onde está o bueiro
Buscando sorrir para cada coisinha
Cada pessoa, cada gesto e palavra
Como um riso de alegria
E ao mesmo tempo despedida
Sem pressa, sigo, apenas sigo...