Um andador para dois
Noites amenas, que ostentam estrelas tão serenas; que segredos escondem de dias tão turvos, pesados de carregar?
A chuva bate insistente em minha vidraça, como se transmitindo mensagem em Morse, cifrada.
Mensagem que traduzo como presságio de mudanças. Não há que fazer delongas: o Tudo é parte do Nada.
Aproveito os pingos da chuva e construo com eles um memorial a tua ausente imagem.
Qual Fídias redivivo, aceito do carteiro-chuva a entrega de meu alforje de sonhos, sonhos de sertanejo valente.
Pego do cinzel da sublimação e, inversamente, projeto em meu coração, labirintos para o escoar
Lento, mas contínuo, dolorido, perene, desse esperar de crédulo, manso e resignado penitente.
Meticulosamente vou desconstruindo, com zelo de artesão, as marcas deixadas por tua jóia-miragem.
É chegada a hora de abandonar o posto de sentinela e, debalde toda seqüela, ao lado dos vivos, impávido, formar.
Os mortos estão impacientes, querem partir. Urge deixá-los seu rumo seguir - sem mais tardar.
Aqui, neste domínio de Hades, pressinto, em uma redoma brilhante, um idoso casal, trocando olhares de amor.
Sem mais o viço de outrora, do tempo em que foram amantes; mas juntos, um acarinhar constante, apoiados num andador.
Vós não sois eterna, Noite; seguirás teu caminho, escoltada pelas águas desta chuva, deixando impoluta a estrada para um novo Dia reinar.
No Tao aprendemos que a vida se processa em ciclos. Mas na vida resistimos em perceber que devemos deixar sempre arejadas as portas de nosso existir, para que os ciclos se processem normalmente também em nós, sem traumas.
Vale do Paraíba, madrugada da última Terça-Feira de Março de 2009
João Bosco